sexta-feira, 26 de outubro de 2007

Dia 12: San Juan de Ortega - Burgos

A ressaca era enorme! Logo de manhã, na casa de banho, encontrei o Yves. Viviane tinha-me dito que o Yves era um médico com uma crise na profissão. Começara a questionar a medicina convencional. Não concordava com muitos aspectos daquilo que exercia. Penso que também estaria no seu Camino próprio e pessoal. Perguntou-me como estava e mencionei a dor de cabeça tremenda. Recomendou-me imensa água. Ter um médico pessoal no Camino tranquiliza bastante. Acaba logo com os bichinhos a imaginar filmes.

Já era a terceira vez no Camino que a pessoa certa estava ao meu lado para me ajudar em dificuldades. Primeiro o Alfred com as pastilhas de magnésio. Depois a peregrina francesa com o Voltarem. Embora tivesse dito na altura que o Voltarem Gel e o Voltarem Rapid não tivessem feito nada, não quero imaginar como teria ficado se não os tivesse tomado. E agora o Yves, um médico, numa quebra de tensão.

Gosto de pensar nas sucessões de acontecimentos, em que os bons são sempre equilibrados com os maus. Se nunca tivesse conhecido a Viviane, nunca saberia que Yves era médico. Se não me tivesse deitado naquele banco de jardim, uma enfermeira Francesa nunca teria ido ter comigo, perguntando se precisava de ajuda. E por sua vez, ela nunca teria sabido que Yves era médico, nunca lhe chegando a perguntar por um tornozelo dorido e inchado. Yves ficara alarmado. Era uma inflamação grave, em que iria necessitar de pelos menos uma semana de fisioterapia, se parasse de caminhar imediatamente. Lembro de ela ter passado por mim mais tarde naquele dia, em que muito tristemente me disse "for me, tomorrow, auto-bus". Compreendia a dor dela. A dor física conseguíamos suportar todos os dias, em todos os passos. Mas aquilo era maior que qualquer dor. O fim do Camino antecipado. Ser obrigado a parar. A desistir.

Era um enorme privilégio poder estar no Camino, e sentia-o todos os dias. Ser obrigado a sair dele, era quase como se nos obrigassem a negar a nossa condição humana, tudo aquilo que está nos nossos genes. Quase como que uma herança. Aliado ao facto de ser algo desejado e planeado, era terrível a sensação de ser obrigado a desistir. De o nosso corpo não aguentar. De ser colocado de fora por um método semelhante ao de uma selecção natural, vendo outros a conseguir e prosseguir. Vi esse sentimento várias vezes na cara de peregrinos.

Manada de vacas no meio do Camino. Muitos bezerros acompanhados pelas suas mães vigilantes. Tivemos algum cuidado.

O albergue oferecia desayuno a partir das 6:00. Chegámos às 7:00. Tinham acabado de fechar as portas. Bolas! Precisava de comer. Comi as minhas últimas duas fatias de pão integral com queijo e chourição e dividi a última das madalenas com a Viviane. No dia anterior, um Francês, ao ver o meu estado, tinha oferecido um saco com madalenas. Até presunto se ofereceu para dar. A mulher dele estava a fazer o Camino a pé, e ele acompanhava de carro. Parava em todos os pueblos para uma peregrinação de "degustação", como referiu, e tinha alguns "espólios" da sua peregrinação no carro para me oferecer.

O dia fazia lembrar a partida de Saint Jean Pied de Port e a passagem pelos Pirinéus. Caíam ocasionalmente alguns pingos, mas não obrigavam a vestir a capa para a chuva. O nevoeiro era cerrado. Parámos em Agés para um pequeno-almoço mais composto no "El Alquimista". Nome inspirado no Paulo Coelho? O serviço era dolorosamente lento. Demorámos uma hora para tomar o pequeno-almoço. Mais cedo ou mais tarde, todos chegavam à mesma conclusão, de que os Espanhóis só atendem a uma tarefa de cada vez, e ficam ofendidos se alguém lhes pede algo durante a lenta execução da tarefa que efectuam. Mesmo se esse algo for igual àquilo que estão a fazer! É desesperante. Depois de pagar uma fortuna de 5€ por um bocadillo de pão acabado de sair do forno com um excelente queijo acompanhado de um café con leche, partimos para o Camino.

Agés com El Alquimista por trás. Placa a indicar Santiago a 518km.

Viviane a desesperar no El Alquimista pelo serviço leeeeeeentooooo.

Caminhava lento. Não estava confiante nas minhas capacidades. No dia anterior até já tinha arriscado um sprint final até San Juan de Ortega, nos últimos quilómetros. Nessa manhã, nem arriscava com segurança a subida que encontrei para Atapuerca. No topo da colina encontrámos uns curiosos círculos de pedra. O nevoeiro permanecia.

Círculos de pedra

Em Villalval parámos para um café solo. Encontrava-se sempre alguém conhecido nos cafés. Era engraçado chegar a um café numa aldeia perdida no meio do nada, onde nunca tivemos, e começar a cumprimentar toda a gente que se encontra no café. Ainda me lembro, dias mais tarde quando a Gordana chegou a um desses cafés e após alguns cumprimentos, olha em volta e sai-se com um "Oh my god! I know everybody!". Sim, a peregrinação no Camino tem quase o mesmo efeito do que abusar do álcool numa festa. No dia seguinte, toda a gente nos conhece.

Sierra de Atapuerca. Moi em pose peregrino. Não gosto de fotos minhas. Coloco esta porque estou um pouco escuro.

Não encontrava chocolates ou doces em nenhum café e não tinha nada na mochila para ir comendo. Chegámos rapidamente a Villafria. Como ia sempre a conversar com a Viviane, esqueci-me completamente das horas e de comer. Eram 13:00. Parei num café em Villafria e comi o que encontrei com mais calorias. Um hambúrguer. Seguindo o conselho do Yves, comecei também a pedir refrigerantes com soda.

Viviane no ritual de mudar os pensos dos pés

A estrada que parte desse café até à entrada de Burgos, foi provavelmente o pior troço de todo o Camino. É uma recta por um passeio ao longo da estrada de quatro vias, ladeada dos dois lados por fábricas e armazéns enormes. O músculo da planta dos pés da Viviane decidiu dar esticões em cada passo que dava. Andávamos muito lentamente. O cheiro dos fumos e buzinadelas dos carros lembrava dolorosamente a vida na cidade. Foi péssimo. As nuvens dissiparam-se e o sol decidiu brilhar novamente. Finalmente Burgos. E digo finalmente, um pouco a brincar. O meu guia dava a etapa com 22km. O da Viviane com 28km. Os 6km que faltavam, que na realidade eram 8km, eram desde a entrada de Burgos até ao albergue. O meu guia só indicava as distâncias até às entradas e desde as saídas das cidades. Pormenores... foi uma brutalidade de quilómetros na cidade! Primeiro pela parte nova e as suas enormes avenidas. Depois pela parte histórica, bem mais agradável. Mas não deixa de ser pela cidade. O piso é do pior que pode haver para caminhar, de alcatrão e calçada.

A catedral de Burgos é algo de surpreendente e maravilhoso. Fiquei fascinado pela forma como surge à nossa frente, quando caminhamos pelo meio da cidade, e pelo seu detalhe.

A catedral de Burgos surge no Camino

Catedral de Burgos

Finalmente, após muito penar, o albergue! Perto da catedral, vimos a construção quase finalizada do futuro e novo albergue de peregrinos, mesmo no coração do centro histórico da cidade, como em todas as outras cidades e pueblos do Camino, e com muito bom aspecto. Infelizmente, da catedral até ao albergue actual, ainda vão 2km de distância.

Albergue provisório de Burgos

O albergue actual situa-se num parque da cidade, em casas pré-fabricadas. É realmente temporário. O banho foi de água fria, novamente. Depois dos rituais habituais, como lavar roupa, comprar comida, uma ocasional visita à farmácia, a Viviane queria entrar dentro da catedral para a conhecer. Pela primeira e única vez no Camino, estava demasiado arrasado para fazer mais fosse o que fosse. Já tinha andado 8km por Burgos, não se pode dizer que não cheguei a conhecer Burgos. Fiquei à espera da Viviane no restaurante onde iríamos jantar, bebendo um copo de vinho e actualizando o meu diário. Depois do jantar, voltámos para o albergue. Já me sentia mais forte.

1 comentário:

uhmanoh disse...

Oi, gostaria de saber onde existe esse círculo de pedra que aparece na foto, em que há a mulher e o nevoeiro?

Obrigado pela atenção.

Achei um máximo o blog

um abraço