Acordámos às 6:00. No dia anterior tinham-nos dito que em Logroño só existia um albergue que tinha apenas 80 camas, e se não apanhássemos lugar, então só apenas num hotel com um mínimo de 40€ por noite. A maioria dos peregrinos tinha esta informação, e embora ninguém quisesse encarar essa etapa como uma corrida, penso que a maioria assim o fez. Fiz o máximo para o evitar, mas fui vítima mesmo assim.
Os relatos de encontros de cães menos amigáveis com peregrinos são comuns no Camino. A saída de Los Arcos à noite proporcionou o nosso primeiro e único encontro com um desses cães. Numa estrada sem iluminação, ainda sem luz no céu, vimos o vulto de um cão enorme que ladrava ameaçadoramente a guardar o portão de uma quinta. O camino passava por ali, por um trilho estreito, e não podíamos dar a volta. No meio dos latidos, ouvi o barulho de uma corrente de ferro pesada a arrastar-se pelo chão. Estava preso. Disse à Viviane para não se preocupar, pois o cão estava preso por uma corrente. Continuámos a caminhar, e de repente oiço o barulho da corrente mesmo atrás de nós, onde não deveria estar. O cão tinha a corrente partida! Tinha agora parado de ladrar e começara a rosnar, seguindo lentamente a Viviane. Em Portugal, temos uma frase que descreve perfeitamente o que senti "caíram-me os tomates ao chão!". Penso que esta frase descreve na perfeição aquelas situações de constatação de perigo numa fracção de segundo, em que parece que se abre um vácuo debaixo de nós e, bem... parece mesmo que os tomates caiem nesse vácuo juntamente com parte do estômago. Não sei como é com as mulheres, nem se é assim com todos os homens. Segurei no bastão com força e disse à Viviane para não mostrar sinais de medo, quando ela começou a encostar-se a mim. Mais uns passos e afastámo-nos do cão, que ficou ao portão da quinta, a ladrar novamente. A adrenalina desse momento deu forças para percorrer num ápice a distância até Sansol, quando o sol nasceu. Atrás de nós vimos uma enorme mancha preta no Camino. Eram uns 20 peregrinos todos juntos. Ainda especulámos sobre se não se teriam amontoado antes do cão até que passaram por ele de alguma forma, mas esquecemo-nos disso e não chegámos a perguntar a ninguém.
Fizemos uma pausa em Torres del Rio, para comprar comida numa tienda e tomar o pequeno-almoço. Aí juntou-se o Luís, de Madrid. Ou melhor... colou-se. Não gostei dele desde a primeira vez que o vi. Luís tem os seus quarenta e tal anos, e tem um enorme problema. Fala, fala, fala, fala, fala, ou pior, habla, habla, habla, habla, habla, habla, habla, habla, habla, habla e habla ainda mais. Pergunta se alguém fala castelhano só por cortesia, pois quando respondem que não, continua a falar, falar e falar, com aquele castelhano rápido de Madrid. E mesmo quando eu e a Viviane lhe dizemos para falar mais lento, pois não percebemos tudo o que diz quando fala tão rápido, ele continua a falar como se o mundo fosse acabar no minuto seguinte. Faz isto e aquilo, já fez ou ainda não fez porque não teve tempo. Ainda por cima, atirava-se com aquela subtileza de elefante à Viviane. Passado um hora já não o podia ouvir.
Distanciei-me, acelerando um pouco o passo. Foi quando me apercebi pela primeira vez que já conseguia andar relativamente rápido sem dor nos joelhos. Quando olhei para trás, já não os conseguia ver. Cheirei o caminho. O calor despertava os cheiros da terra. As cores da manhã eram vivas. Tive consciência que estava pela primeira vez no Camino, desde Saint Jean Pie de Port, sozinho, sem dores, e a adorar cada momento. Caminhei até Viana, pela primeira vez, passando por vários peregrinos.
Parei numa fonte na entrada de Viana para me reabastecer de água. Comi qualquer coisa e fumei um cigarro, esperando pela Viviane e pelo Luís. Nada. Perguntei a um peregrino de passagem se tinha visto a "chica brasileña". Sim, tinha, e pelo local que me descreveu, estavam longe ainda. Pelo menos 30 minutos atrás. Segui caminho. A única coisa que me retinha ainda um pouco era de que a Viviane estava com medo de não conseguir percorrer os 27km desse dia, e poderia ficar em Viana. Gostaria de me despedir dela. Mas a influência da "corrida" a Logroño já tinha sido lançada.
Entrei no centro de Viana. Decorriam as festas da cidade. Uma enorme agitação. Todos os homens vestiam camisa branca com lenço vermelho ao pescoço. As mesas e cadeiras dos bares inundavam as ruas apinhadas de gente. Muitos peregrinos não resistiam à tentação e sentavam-se a refrescarem-se com uma caña. Numa outra ocasião, teria sido o primeiro a sentar-me numa dessas mesas. Mas nessa tarde não. Queria sentir o caminho. Segui para fora de Viana.
O troço entre Viana e Logroño é penoso. Estava um calor enorme. Cada vez maior de dia para dia. O verão decidiu mesmo aparecer em Setembro. Lembrei-me de uma frase que um peregrino me disse sobre o Camino:
"Camina como un viejo para llegares joven a Santiago"
Certamente estava a seguir indirectamente esse conselho nos últimos dias. Embora conseguisse caminhar rápido, decidi seguir conscientemente o conselho para caminhar sob o sol tórrido dessa tarde. Muitas pausas ao caminhar, sem parar demasiado tempo. Passo lento.
Logroño estava longe e demorou a chegar. Comecei a lamentar a perda de Viviane. Entre Viana e Logroño apenas encontrei um peregrino de bicicleta, o qual conversei um pouco. De facto, passou por mim três vezes. A primeira para falar. A segunda para trás, em alta velocidade, pois esquecera-se da sua bolsa com todo o dinheiro a 6km atrás. E a terceira, mais relaxado já com a sua bolsa, rumo a Logroño. Quase no final dos 27km, os pés doíam, as pernas prendiam e os joelhos queixavam-se. Só mais tarde aprendi a detectar o limite em quilómetros de dor de cada parte do corpo. Limite esse, que ia aumentando de dia para dia. Certamente não estava nos 27km ainda.
Desde a altura em que se vê Logroño ao longe, até lá chegar, é uma eternidade. É tudo uma sugestão para a mente. Julgamos que estamos quase lá, quando na realidade, ainda nem perto estamos. Aos poucos fomos aprendendo que entre ver uma cidade ao longe e chegar ao albergue, pode até implicar um almoço pelo meio, e torna-se assim muito mais fácil.
Finalmente a ponte de Logroño! Fui directamente ao albergue. Os hospitaleiros eram de uma simpatia enorme e refrescante. Disseram-me que raramente viam um Português, mas que a dois dias à frente, caminhava uma Portuguesa. Nessa altura, dois dias à frente era mais longe do que no continente ao lado, separado por um oceano.
Embora compreendesse porquê, não deixava de achar incrível. A Italiana com a perna em mau estado, que caminhava lentamente, mas sem parar, chegou primeiro do que eu.
Estava na hora de cumprir o ritual sagrado do fim da tarde: conhecer o local e beber uma caña na melhor esplanada que encontrasse. Assim o fiz. Ainda não o disse, e vou aproveitar agora: os espanhóis são uma lástima a tirar imperiais! Por isso é que eu chamo caña àquilo, porque de imperial (ou "fino", para os leitores do norte), aquilo não tem nada! Tão mal tiraaaaado! Em Puente la Reina, quando pela primeira vez explodi na minha constatação de uma miséria de caña, o tipo que estava a servir na esplanada disse-me "cheira-me que você também é Português". Pronto... apenas os Portugueses compreendem.
Quando regressei ao albergue, vi a mochila familiar da Viviane. Ela tinha conseguido! Recuperei algum ânimo, mas rapidamente passou quando ouvi a voz do Luís ao longe. Arggg! Aquele tipo provocava-me quase uma reacção alérgica.
Fui jantar com a Viviane, o Luís e o Dinis. Embora ainda não tenha mencionado o Dinis, foi o primeiro peregrino elegível que conheci. Digo elegível, porque o primeiro peregrino que realmente conheci, que me acompanhou desde Bayone a Saint Jean Pied de Port, foi um italiano, mas que estava a regressar para ir buscar o carro dele, depois de já ter feito o Camino. O Dinis, cujo nome pronuncia-se "Déni" em francês, é Canadiano, de uma parte do Canadá muito rara pelo Camino. De facto, os Canadianos que se encontram pelo Camino são todos do Quebec. Dinis era da Nova Escócia. Jantei com ele na primeira noite em Saint Jean Pied de Port, e viria a ser o meu último companheiro de Camino até Finisterra. Tinha uma profissão interessante. Era um "Park Ranger", e em cada três anos, de modo a conseguir promoções, escolhia ir para um novo parque natural no Canadá. Nos últimos três anos, fora destacado para o Alasca.
Dinis falava muito mal espanhol, e falávamos Inglês entre nós. Viviane falava muito mal Inglês, e falávamos Português entre nós. Luís falava muito mal fosse o que fosse, e só falava Castelhano em alta velocidade. A comunicação era engraçada, à falta de outra palavra. Por algum motivo, o Luís teimava que eu não percebia Castelhano e usava a Viviane para que me traduzisse tudo. Desisti. O Luís irritava-me à brava. É um daqueles espanhóis típicos que os Portugueses detestam, chicos-espertos. Nem faltava a unhaca no dedo mindinho. Ao jantar passei-me. O tipo até decidia por nós. "Para esta mesa, um jarro de cerveja sem alcool e uma botelha de água". Uma botelha nos c****, isso sim. Escusado será dizer que bebemos todos vinho. Eu e o Dinis ainda bebemos uma segunda garrafa só entre nós hehe. Como pude constatar mais tarde, eu e aquele tipo éramos um perigo a beber vinho.
1 comentário:
Estou divertida. Quero mais.
Prazeres
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