Apenas olhei para o mapa do percurso, nessa manhã, ainda no albergue. A etapa do dia, pelo meu guia, indicava como destino a vila de Castrojeriz. Foi então que reparei. Eram 38km até Castrojeriz! Tinha que ser um erro do guia. Não podiam haver distâncias assim tão grandes para as etapas de um só dia. O guia da Viviane dividia a etapa do meu guia em duas, chegando só a Castrojeriz no dia seguinte. Não era nenhum erro do guia. Folheei o guia e constatei que para além dessa etapa, existia uma outra com 40km. O guia dividia o Camino de Saint Jean Pied de Port a Santiago de Compostela em 31 etapas, e de Santiago de Compostela a Finisterra em mais 3 etapas, dando um total de 34 dias a caminhar.
De manhã, ao caminhar, saboreei os primeiros passos sem qualquer tipo de dor ou incómodo. Mas passados uns 500 metros, a dor no tendão da perna despertou. Mesmo assim, talvez fosse capaz de percorrer aquela distância de quase 40km. Mas a Viviane não. Estava muito em baixo. Os pés doíam-lhe como nunca. Caminhava lentamente.
Perguntámos aos que seguiam caminho connosco para onde iriam nesse dia, e todos respondiam "Hornillos del Camino". Decidimos finalizar aí a etapa. Tinha acabado de aumentar o tempo do Camino para 35 dias. Não estava a gostar da sensação de atrasar o Camino. Teria que rever muito bem o meu guia quando chegasse a Hornillos del Camino.
Parámos para um café solo em Tardajos. Na noite anterior tinha havido a fiesta do pueblo. Alguns dos participantes, conservados pelo álcool, ainda se mantinham em pé, e muito bem dispostos. Tive que usar do meu melhor espanhol para convencer um deles que teimava em me dar boleia no seu "coche" com ar condicionado para o próximo pueblo, que queria ir a pé e não de carro.
Em Rabé de las Calzadas, uma freira perto da igreja, oferecia aos peregrinos que passavam pequenas medalhas presas a um fio branco, perguntando sempre o país de onde eram os peregrinos.
A partir daí, começou o que chamo de "deserto" e o que a maioria chama de "mesetas". Em Burgos, perdemos muitos dos peregrinos que nos acompanhavam. Todos esses apanharam um autocarro de Burgos até León, passando assim o "deserto" do Camino. Mais uma vez não conseguia compreender essa forma de fazer o Camino. Isso para mim era impensável. Mais tarde, às portas de Santiago de Compostela, no Monte do Gozo, jantei com um australiano que também saltou o Camino de Burgos a León, e estava arrependido por o ter feito. Ainda mais porque o irmão dele fez todo o caminho e disse-lhe que aquela parte do Camino era essencial para a experiência do todo, e que foi precisamente aquela parte do Camino que o marcou mais. Achei curioso, pois comigo sucedeu precisamente o mesmo.
Estava então à minha frente um deserto amarelo de searas cortadas a 10 centímetros do chão, e um chão castanho e amarelo de terra batida. Não se via mais nada até onde a vista alcançava. O sol esteve encoberto de manhã, mas de tarde estava abrasador. Nem uma única nuvem no céu.
Finalmente vi Hornillos del Camino lá em baixo. Ao ver o pueblo ao longe, tive a primeira indecisão se deveria de continuar ou ficar ali. A Viviane seguia-me a 1km atrás. Nesse dia estava a ter muitas dificuldades. As dores nos pés eram enormes. Decidi ficar. Mas não iria cortar mais etapas. Aquela sensação de ter ficado ali estava-me a incomodar. Se estivesse só, teria continuado.
Morri de tédio em Hornillos del Camino. O pueblo é apenas uma rua com casas, o albergue, um café, e uma "tienda". Nada mais. Ainda por cima, a Viviane estava arrasada e esteve a tarde toda a dormir. Parecia que todos os alemães decidiram ficar ali e todos os restantes seguiram em frente! Não encontrava praticamente nenhuma cara conhecida com quem falava. Na generalidade, e não gosto de generalizar estas coisas, mas no meio de tantas pessoas de diferentes nacionalidades, notei que os alemães são muito frios no contacto. Não significa que sejam antipáticos, muito pelo contrário, mas para estabelecer uma relação com algum deles, é muito, mas mesmo muito difícil.
Mas nem todos tinham seguido em frente. O Yves ficou por ali. E claro, o Luís, mas esse já mal falava comigo. O Dénis tinha-se constipado de noite, em Burgos. De manhã disse-me que estava muito cansado devido à constipação. Vi-o parar às portas de Burgos, e foi aí que deixei de o ver. Ainda conheci melhor o José e a Isabel, uma espanhola que iria começar a caminhar connosco no dia seguinte.
Continuava aborrecido por ter parado ali e não ter continuado. Decidi fazer contas. Nunca as tinha feito. Calculei a data de chegada a Finisterra, mesmo se não cortasse mais nenhuma etapa do guia. Vi a data em que teria que estar em Lisboa, já a trabalhar. Nem queria acreditar. Para conseguir fazer o Camino até Finisterra, teria que recuperar um dia! Tinha tirado cinco semanas de férias, julgando ser mais que suficiente para o Camino. Na minha ingenuidade, até pensei que ainda teria alguns dias para descansar em casa. Mas... 31 dias até Santiago, 3 até Finisterra, 2 de viagem até França, 1 de viagem para regressar. Totalizavam 37 dia. As 5 semanas. E estava atrasado.
Examinei pela primeira vez todas as etapas do meu guia, com muita atenção. Tinha que planear a recuperação de um dia. Não queria perder a maioria dos pueblos e cidades em que terminavam as etapas. Para além disso, havia outro factor, a Viviane tinha que estar no dia 30 em Santiago de Compostela. Teria que apanhar um autocarro para cortar alguns dias do Camino. E tencionava cortar algures entre Burgos e León. Verifiquei novamente o guia. Estava decidido. No dia seguinte, iria caminhar os 18km até Castrojeriz, e ainda os 25km da etapa do dia seguinte, até Frómista. Se não conseguisse fazer esses 43km, iria ficar em Boadilla del Camino, a 6km de Frómista, e recuperaria esses quilómetros no dia seguinte, até Carrión de los Condes, numa etapa curta de 19km, fazendo 25km. Era a altura ideal para recuperar o dia... pensava eu. Continuava com a noção predefinida das etapas bem delimitadas. Sabia que a Viviane não iria comigo. Quando acordou, contei-lhe o que tencionava fazer. Ela iria ficar em Costrojeriz.
Nessa noite jantámos no único restaurante do pueblo que devia o nome ao seu dono actual, "Manolo", em frente ao "galo delator". O dia seguinte iria certamente ser diferente. No fundo, já começava a ansiar por uma mudança no Camino. Não me queria separar da Viviane, mas não iria ser mau de todo.
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