sábado, 13 de outubro de 2007

Dia 2: Roncesvalles - Zubiri

Acordei às 6:00 com quase todos os peregrinos. A música ambiente gregoriana que colocaram ao acenderem as luzes do albergue de Roncesvalles, no enorme dormitório comum, acordou praticamente todos. Manti o hábito até ao final do Camino de acordar sempre às 6:00. Mesmo quando queria dormir mais, abria sempre os olhos às 6:00. O peregrino que estava no beliche ao meu lado, enquanto arrumava a sua mochila, disse-me a primeira frase da manhã, mesmo antes de me levantar. "It's rainning". Outro dia com chuva. Não desanimei. Nem quando desci as escadas e verifiquei que os meus joelhos mal o deixavam fazer. Nem quando cheguei à rua e verifiquei que ainda era noite cerrada.

Analisei juntamente com o Alfred o mapa da etapa do dia. Combinámos terminar em Larrasoaña. Foi a última vez que vi o Alfred, nunca me chegando a despedir dele.

Iniciei o Caminho de noite, acompanhado de Ana (Iana) do País Basco à luz da sua lanterna pelo meio de um bosque. Tomámos o 'desayuno' em Burguete. Foi quando reencontrei novamente o David. Começámos a conversar e terminou por ser o meu companheiro de Camino até Zubiri. A chuva não parava de cair. A minha terceira t-shirt já estava ensopada. Comecei a duvidar da fiabilidade da minha capa para a chuva.

Ana e um "espanhol" a caminhar em Burguete

Os joelhos sempre a doerem, com o joelho direito a destacar-se na dor, principalmente nas descidas. Passámos por trilhos de terra e rocha, que com a chuva se tornavam em ringues de patinagem artística devido ao solo argiloso. Os sulcos das botas encheram-se de argila, que em contacto com mais argila e um joelho direito muito tremido, premiaram-me com a minha única queda do Camino, de costas, amortecido pela mochila. Não foi grave. Foi mais o susto.

David, aka "tartaruga ninja"

Passando Espinal, o percurso e o resto do dia foram marcados pela dor. A subida até ao "Alto de Erro" foi... não digo agoniante porque essa é a palavra que reservo para a descida. Inicialmente a dor surgia nas descidas, depois nas subidas também, e passado um pouco, até nos percursos sem desnível. Uns quilómetros depois o bastão transformou-se numa bengala. A perna cada vez mais esticada. Nos últimos 6km até Zubiri, o joelho esquerdo começou a doer igualmente.

Alto de Erro

David acompanhava-me sempre. Por vezes desaparecia, andando mais rápido, mas esperava por mim sentado numa rocha. Perguntou se não queria ligaduras para ligar e apertar o joelho. Já estava por tudo. Uma peregrina francesa parou e ofereceu-me Voltarem em Gel para colocar debaixo da ligadura. Não ajudou muito. Mas sob a indicação de que Voltarem ajudava, tomei um Voltarem Rapid em comprimido. Também não ajudou. Parou de chover.

Descida para Zubiri

A descida acentuada dos últimos quilómetros até Zubiri demorou uma eternidade. Via cada passo como uma conquista. Em certos troços demorava cerca de 1 minuto para descer 1 metro. Se não fosse o bastão, não teria conseguido. David tinha descido rapidamente até Zubiri e ficara junto à ponte à minha espera. Bjorgen seguia-me com enormes pausas à distância, sempre atrás de mim, a vigiar-me. Dias mais tarde, em Los Arcos, sentados numa esplanada, disse-me que ao ver-me neste dia, julgou que eu nunca iria conseguir. Ficara muito contente por ver que não tinha desistido. Frases destas, no Camino, não nos fazem nem bem ao ego nem nos fazem chorar. Fazem-nos sorrir para a vida com um enorme orgulho por nós, e pelo nosso novo amigo do Camino. Mas estava longe de me sentir assim quando cheguei a Zubiri, pois mal conseguia andar. No entanto, as dores davam-me uma força ainda maior para continuar. Não iria ser vencido. O meu objectivo era ir á farmácia, ver o que poderiam fazer, e seguir até Larrasoaña. Havia ali a única farmácia desde Burguete.

Chegada a Zubiri

Quando cheguei a Zubiri disseram-me logo que o albergue já estava cheio. Às 14:30?! Segui até à farmácia na outra ponta de Zubiri. Fechada. Desde as 14:30 às 16:30. Já não me lembrava dos horários em Espanha. Eram 14:36. Demorei 6 minutos para percorrer uma rua de Zubiri. Raios. Não ia conseguir. Não. Ia! Perguntei se havia alguma farmácia em Larrasoaña. Ninguém parecia saber. Era o fim. Não ia arriscar.

Quando cheguei à ponte de Zubiri, o David ainda estava à minha espera. Mesmo antes da ponte vi um albergue privado. Entrei. Dois peregrinos entraram atrás de mim, em que lhes disseram que já só havia um lugar e eu estaria primeiro. Só tencionava perguntar o preço, mas era então ali que iria ficar. Quando saí, foi mesmo a tempo de ver David arrancar para Larrasoaña. Chamei-o, mas já não me ouviu. Foi a última vez que o vi. Estava a perder os meus companheiros de Camino com uma rapidez incrível, e sem sequer me despedir deles.

Esperei pela abertura da farmácia num café. Conheci John, um Irlandês que me iria acompanhar nos próximos dias. Tinha um sentido de humor terrível. Dizia sempre que se a dor não passasse com cerveja, era porque ainda não tinha bebido o suficiente. Irlandeses. Quando me perguntava se ainda tinha dores, dizia-me sempre "Don't worry about that! Think of this: you can always amputate!". Quando me viu acender um cigarro contou-me a história curiosa de como conseguiram proibir de fumar em todos os locais fechados na Irlanda, e do livro, traduzido em todas as línguas, que o ajudara a deixar de fumar. Tenho aqui a indicação...

Finalmente cheguei à farmácia, conhecida por todos como "Loja do Peregrino". A loja mais frequentada por peregrinos nos pueblos, logo a seguir às "tiendas". Após explicar as dores agudas "en las rodillas", a farmacêutica foi buscar uma caixa e deu-ma para as mãos. Diclofenaco.

- "Voltarem?"
- "Si."

O quê?! Tinha disso às carradas na mochila. Perguntei se havia algo mais a fazer. Disse-me que não. E que só me estava a dar aquilo em "pastillas" porque a dor era mesmo grande. O John já me tinha avisado para não tomar nenhum analgésico. Cortar com os alarmes de dor do corpo no Camino não era realmente boa ideia. Comecei então a tomar o anti-inflamatório. Por doze dias.

Fora forçado a parar. As dores não pareciam diminuir. Estava completamente arrasado, mais no espírito do que no corpo. Não tinha cumprido o objectivo de Larrasoaña. Isso deixara-me totalmente em baixo. Mas amanhã seria um novo dia.

1 comentário:

Anónimo disse...

A perfeição com que descreves a dor nos joelhos e o pavor das descidas fez me recordar algo que me marcou quando fiz o caminho…

Lurdes