quarta-feira, 10 de outubro de 2007

Dia 1: Saint Jean Pied de Port - Roncesvalles

Saint Jean Pied de Port, Rue de la Citadele

Começo a escrever, tal como comecei a andar. Com toda a inexperiência do mundo nas coisas do Camino, sem saber o que iria encontrar. Lembro-me do meu primeiro passo, logo após ter parado à porta do albergue em Saint Jean Pied de Port.

- "Oh no, it's raining!"
- "Yes."

Por uma fracção de segundo foquei a ideia de esperar que parasse de chover. A ideia pareceu-me ridícula. E se chovesse todos os dias? Estava ali para fazer o Caminho. Vesti a capa de chuva e dei o primeiro passo para fora do albergue. Finalmente o Caminho. Ansiava por aquele momento.

Albergue em Saint Jean Pied de Port

No dia anterior tinham-me avisado para não ir pela rota de Napoleão se estivesse mau tempo. Estava a chover a potes. O dia estava cinzento. Lembrava-me das palavras da Li "não atravesses os Pirinéus sozinho se estiver mau tempo". Teimoso, já tinha decidido que queria fazer a rota de Napoleão. Não queria ir pela de Valcarlos. Isso para mim seria interpretado na altura como um sinal de fraqueza. Logo no início do Caminho, não. Mas não queria fazê-lo sozinho. A poucos metros à minha frente Caminhava Francesca, da Itália. Estava só. Era fácil conhecer alguém. Meti conversa com ela, fomos comprar comida a uma das duas únicas lojas abertas, e caminhámos juntos.

Começamos a subir a íngreme subida à saída de Saint Jean Pied de Port. Quase no topo, a Francesca parou. O tempo estava a piorar. Olhou para trás e decidiu que queria ir pela rota de Valcarlos. Perguntou-me se a acompanhava. Pensei durante longos segundos. Não queria ir sozinho. Mas... não. Iria continuar a subir. Iria só. Despedi-me da Francesca. Passou um grupo de peregrinos e segui-os.

Francesca no albergue de Santo Domingo de la Calzada

Fui sempre alternando companhia pelo Caminho. O Caminho... eu já sabia que era a subir. Mas até esse dia, nunca tinha percebido o que é realmente SUBIR. Subir é a palavra de ordem. Quando parece que já não se sobe mais, há uma curva e... surpresa, uma nova subida. Pensei que o meu coração fosse rebentar. Tive que começar a fazer pausas. O cansaço começou a surgir. A chuva constante era desanimadora. Estava calor. Combinação terrível com a capa de chuva totalmente fechada, pois fica tão molhada por dentro devido à transpiração e humidade como por fora.

Parei no albergue de Orisson, que não surge no meu mapa. Foi a única vez que usei uma t-shirt de algodão para caminhar. Na casa de banho, dava para espremer bastante água dela. Estava totalmente molhada. Mais confortável com uma t-shirt seca e um 'café au lait', segui pelo caminho. Ingénuamente, pensava que o pior já tinha passado.

Tentava sempre seguir na frente de um grupo mais lento. Assim ficava com a segurança que alguém iria passar por mim. Conheci David, um Francês que me iria acompanhar no segundo dia. Para além da mochila, caminhava com uma tenda da Quechua, daquelas de "dois segundos". Daquelas que às costas, fazem qualquer um parecer-se com uma tartaruga ninja. Apesar do peso, David estava em boa forma e tive que me despedir dele, pois não conseguia acompanhá-lo. Mais tarde soube que David falhara a saída da estrada e chegara uma hora depois de mim a Roncesvalles.

O grande teste à força de vontade dá-se quando as subidas começam a ficar mais íngremes. Não vos consigo descrever a imagem. Os Pirinéus devem ter uma vista espectacular, mas com o nevoeiro que estava, via apenas 10 metros à frente e 10 metros atrás. Ouvia o som de riachos e vacas, mas não via nada. Por vezes ouvia vozes atrás de mim. Parava. Nada. Olhava para a frente e via um trecho de uma subida. Baixava a cabeça. As nuvens passavam velozmente entre as minhas pernas. O vento soprava cada vez mais frio. O cansaço era cada vez maior. Parava. Retomava a subida lentamente. Olhava em frente e a vista era a mesma de há 5 minutos atrás. Uma subida. Passado horas as pernas começaram a dar sinais de cãibras. Relaxei e fiz o caminho mais pausadamente. Não estava preparado fisicamente.

Uma foto interessante que tirei de Bjorgen, um Dinamarquês com quem iria falar mais tarde. A única que tirei na subida dos Pirinéus. Demonstra bem o meu raio de visão. Bjorgen ainda gozou com um "Hey! Big smiles everybody!".

Bjorgen e a vista dos Pirinéus

Devem ter passado umas 6 ou 7 horas quando cheguei ao desvio que seguia para fora da estrada. Via apenas um sinal a apontar para o nevoeiro e um pedaço de relva. Um passo para o nada. Segui nessa direcção. Vi um vulto à distância, entre o nevoeiro. Tinha chegado à "cruz". Por trás de mim chegaram 4 alemães. Destacava-se o Alfred e a sua irmã que estava com algumas dificuldades. Alfred era muito bem disposto e conversador e tinha uma forma física brutal. Ia devagar apenas devido à sua irmã.

Entrámos num carreiro de lama em que apenas dava para colocar um pé de cada vez, um à frente do outro. Por baixo, uma descida a pique que parecia sem fim, pois terminava lá em baixo em nevoeiro. Foi então que aconteceu. Dei um passo em falso. Para o corrigir, fiz mais força nas pernas. Dei gritos de dor. Não para alguém me ouvir, mas de dor aguda genuína. Duas cãibras, uma em cada perna, nas coxas, ao mesmo tempo. O bastão era tudo o que me segurava para não cair. Enterrado na lama, agarrei-me com força a ele. O Alfred veio a correr para mim. Não via quase nada devido às dores. Apenas disse "cramps... on both... legs... it hurts". Rapidamente o Alfred tirou da sua mochila um kit de primeiros socorros. Falava calmamente para me tranquilizar, a dizer-me que era normal, que corria em maratonas e sabia bem o quanto doía. Também me disse que trabalhava num hospital e que tinha o ideal para cãibras. Comprimidos de Magnésio. Deu-me 3, que os tomei de imediato. Passado uns minutos a dor passou. Não voltei a ter cãibras o resto do caminho.

Alfred e a sua irmã

Continuei a caminhar com eles. Depois do que acontecera, não queria ir sozinho. Quando desejamos que párem as subidas e só queremos descer, surgem as descidas vertiginosas que nos fazem arrepender dos nossos desejos. Mas isso só depois da lama que me fez redefinir o conceito de "lama". O meu bastão conservou a marca preta de lama, até onde ele se afundava, à procura de um sítio mais rijo para dar o passo. Nos dias seguintes, quando relatava a minha travessia dos Pirinéus, mostrava sempre a marca no bastão.

Lama nas calças

As descidas são de uma beleza pérfida. Bosques enormes, verdes, e embora com chuva e nevoeiro, hospitaleiros, com descidas íngremes enormes. De facto, uma descida de 500 metros. Dos 1500 metros para os 1000. Receie novamente pelos músculos, mas não cederam.

Bosque nos Pirinéus

Agradeci ao meu guardião do dia, Alfred, e parei um pouco para comer algo. Alfred seguiu caminho com a irmã. Estava o dia todo apenas com dois croissants. A segunda t-shirt, agora de polyester, estava também totalmente molhada. Parara finalmente de chover. Despi a segunda t-shirt e vesti o casaco por cima do corpo.

Paragem para um snack

Continuei a descida que brindava ocasionalmente com algumas subidas que lembravam com medo as últimas horas do percurso. À medida que ia descendo, o nevoeiro começava a dissipar-se. Finalmente lá ao fundo, entre as copas das árvores, encontrava-se a Colegiata de Roncesvalles. Estava quase. Tinha conseguido. Quando cheguei e olhei para o relógio, tinham passado 9 horas desde que saíra de Saint Jean Pied de Port.

Colegiata de Roncesvalles

Nesse dia, quando pensava se conseguiria fazer novamente o percurso naquelas condições, dizia instintivamente que não. Com lama até aos joelhos e uma capa de chuva a salpicar água por todo o lado, entrei orgulhoso na Colegiata, como tantos outros entraram antes de mim, e ainda irão entrar depois, exibindo o meu aspecto estafado e miserável como se fosse a melhor coisa do mundo.

Conheci no bar um peregrino numa cadeira de rodas. Estava paralisado da cintura para baixo. Começara o Camino da porta de sua casa, na Bélgica. Fazia-o numa bicicleta de mãos, juntamente com a sua mulher. Tinha um carro de apoio para a cadeira de rodas e cuidados especiais que os albergues não poderiam providenciar. A conduzir o carro estava uma mulher Belga que já fizera o Caminho três vezes, e que se disponibilizou para o acompanhar. Nos dias seguintes, quando pensava que estava demasiado cansado para andar, principalmente quando chegava ao final de uma etapa, pensava sempre nele. "Não! Eu não tenho desculpa para não andar". E andava sempre mais.

O ambiente em Roncesvalles era incrível. Todos os que começavam o Camino para além de Espanha, que eram bastantes, diziam-me sempre o mesmo, que por vezes passavam meses sem falar com ninguém, mas assim que chegavam a Espanha, a Roncesvalles, cada cara que viam falava com eles, cumprimentava-os, sorriam, continuavam conversa. Era o mundo do Camino com o comportamento dos seus habitantes.

Foram tantas as pessoas que conheci e falei ao longo de cinco semanas, que seria impossível falar de todas elas. Apenas falarei ocasionalmente de uma ou outra pela sua influência no meu Camino, ou pelo seu comportamento mais peculiar. Em Roncesvalles, pela primeira vez deu para ter uma ideia da quantidade de pessoas que faziam o Camino. Por vezes os albergues de um pueblo enchiam com mais de 200 pessoas. Por dia. Naquela linha temporal do Camino. De facto, as distâncias no Camino, quando se referiam a pessoas mediam-se por dias. "Está dois dias à frente". "Vem um dia atrás". E cada desses dias continha toda a população daquela linha temporal do Camino. Mudávamos de local todos os dias. Mas caminhar duas etapas num dia, era como se mudássemos de um mundo para o outro.

É impossível descrever tudo o que se passa num dia do Camino. Termino apenas com as palavras que ouvi na missa do peregrino em Roncesvalles, que, embora não seja Cristão ou de nenhuma religião, tive curiosidade em assistir. "et ultreya et suseya".

2 comentários:

Anónimo disse...

Olá.
Benvindo.

Aguardo pelo próximo dia.
Fotos fantásticas.

Um beijinho
Prima sofia

Lia Ribas disse...

Só conheço uma pessoa que afirma ter atravessado os Pirinéus com bom tempo: eu! O que faz de mim uma afortunada. Em pleno Inverno, um sol imenso nos Piniréus! Até dava para título de um livro! Fico contente por teres conseguido e por teres decidido partilhar a tua experiência ao publicares o teu diário, ainda que com as filtragens necessárias. Dá-me uma vontade de fazer tudo de novo, nem imaginas! Tive um momento, logo após Finisterra, que me fez abandonar as "alucinações" do Camino. Mas agora, tudo parece querer voltar. Preciso de me lembrar, de voltar a ter saudades, de desejar de novo partir daqui sem destino certo. Isso dá-me alento. E os teus relatos ajudam-me, reanimam-me, fazem-me querer investir em novos caminhos...
Fico tão feliz por ver que me citas várias vezes! A Li disse, a Li dizia... É como se eu, ao ser recordada por ti nas mesmas terras que pisei, tivesse percorrido tudo de novo. Obrigada Rui, por me levares de novo ao Caminho. E continua... não pares de contar... O Caminho é também isso. As minhas palavras, as tuas...