terça-feira, 30 de outubro de 2007

Dia 15: Boadilla del Camino - Carrión de los Condes

Acordei às 6:00 com os preparativos do David. Às 7:00 estava a caminhar, ainda de noite. Estava disposto a recuperar a distância até Carrión de los Condes. Sentia-me bem. Tinha recuperado do dia anterior, embora sentisse um pouco mais de cansaço. Como vim a aprender mais tarde, era normal quando no dia anterior se caminha um pouco mais além das nossas capacidades físicas. O David disse-me que o dia estava "nice and dry". O David também foi o peregrino que em Saint Jean Pied de Port, quando a Francesca estava decidida a voltar para trás para ir pela rota de Valcarlos, me disse que as nuvens estavam altas e que o tempo não estaria assim tão mau na rota de Napoleão. Certo. Ahhh nice and dry... vamos ver. Tinha trovejado e chovido a noite inteira. Tinha parado de manhã.

Canal de Castilla

Uma Francesa, vestida toda de branco caminhava à minha frente. Iluminava o caminho. Cheguei ao Canal de Castilla que seguia até Frómista. O caminho tem sempre surpresas reservadas, tanto boas como más, escondidas em todos os locais e pessoas. Naquela manhã, vi o nascer do sol mais deslumbrante de sempre. Não consigo descrever. É impossível. Pensava que o nascer do sol, em todo o seu esplendor, se dava nos dias limpos e quentes. Como estava enganado. À minha frente o céu estava azul-escuro. Ocasionalmente, saltava dum azul de oceano profundo uma descarga de um raio. O sol, escondido atrás de mim, iluminava as nuvens dispersas nessa parte do céu com uma cor rósea. Essa cor fazia brilhar os castanhos e dourados da terra com uma cor de pintura. Fiquei maravilhado durante os 10 minutos que durou. Queria tirar fotos o tempo inteiro, mas sabia que nenhuma iria capturar aquele momento. Tirei apenas uma foto. Pela primeira vez lamentei seriamente não ter levado a minha reflex. Era um momento único que apenas poderia ser minimamente capturado pela sua cor. Ficou apenas capturado pelos meus olhos.

Apenas tirei esta fotografia no auge do nascer do sol, e ficou tremida. Serve para me recordar da tonalidade das cores pela amostra que ficou na fotografia.

A caminho de Frómista

Cheguei a Frómista. A entrada, por uma comporta, é linda. Alguma da cor do nascer do sol ainda permanecia, mas apenas uma pequena réstia daquilo que tinha presenciado atrás.

Entrada em Frómista pela comporta

Começaram a cair uns pingos de chuva. Entrei num café para tomar o pequeno-almoço. Quando saí, chovia bastante. Retirei a capa da chuva, guardada desde Zubiri. Novamente a caminhar sob chuva. O percurso entre Frómista e Carrión de los Condes, é todo, sem excepção, ao longo da estrada nacional, com enormes rectas, ladeadas por marcos do Camino. Os espanhóis não chamam "camino" a esse tipo de percurso, chamando de "senda". Feito a só, a senda é monótona. Longas rectas sempre em cima de lama e pedras, sob chuva. Por vezes as botas ficavam pesadas com tanta lama agarrada a elas.

Senda

Em Revenga de Campos parei para um café solo. Não havia muitos peregrinos no Camino. Tinha começado de um ponto intermédio entre os pueblos mais frequentados para finalizar as etapas. Só via caras novas. Ocasionalmente uma familiar. Em Villarmentero de Campos parou de chover e o sol surgiu. Em Villalcázar de Sirga parei para descansar numa paragem de autocarros. Tirei o resto do pacote de amendoins do dia anterior e ofereci alguns ao peregrino que estava a descansar no banco ao meu lado. Começámos a conversar. Ele caminhava desde Oslo, na Noruega, desde Fevereiro. Mas o mais incrível é que estava a caminhar desde o início sem dinheiro nenhum. E chegando a Compostela, ainda queria ir até Fátima. Não sabia quando iria chegar. Nem queria saber quando iria chegar. Apenas sabia, com toda a certeza, que iria chegar. Aquilo era um pouco ao extremo para mim. E não o via com o espírito do Camino que via em outros peregrinos que também começavam a caminhar de longe. Havia algo de estranho nele. Falava de uma forma lenta e quase sem emoção. Começara a chover de novo. Disse-me que aquele tempo era "holidays" comparado com o resto da Europa. Disse-me que uma vez na Alemanha, tinha estado três dias agachado à beira de estrada, à espera que parasse de chover, pois não caminhava à chuva. Vesti novamente a minha capa da chuva e segui caminho. Dei-lhe o resto dos amendoins.

Era o troço final até Carrión de los Condes. A chuva, como que a querer provar alguma coisa que o alemão tinha dito, irrompeu de forma brutal. Em poucos segundos as calças ficaram coladas às pernas, encharcadas. Não conseguia distinguir se era chuva grossa ou granizo. Era forte, muito forte. O joelho direito começou a doer. Raios! Pensei que já me tinha livrado daquela dor. Em poucos minutos estava a coxear, sem nenhum sítio para me abrigar ou descansar. Só podia avançar lentamente. Tomei um Voltaren Rapid que em 15 a 20 minutos começou a fazer efeito. Deixei de coxear, embora a dor permanecesse, e caminhava lentamente. A chuva abrandou, e finalmente cheguei a Carrión de los Condes. Encontrei rapidamente um albergue. Algumas caras conhecidas. Uma espanhola disse-me que o albergue era muito bom quando me viu hesitar. Resolvi ficar ali. A maioria das caras eram novas. Estavam lá os italianos. O Miro chegou mais tarde. Alguns espanhóis familiares. Mais ninguém.

Carrión de los Condes

A cozinha do albergue só tinha microondas. Comprei uma lasanha e uma garrafa de vinho que tencionava dividi-la com quem quisesse. Numa cozinha de um albergue uma coisa que não existe é vinho a mais. Falei a noite toda com um casal escocês e um alemão. Foi uma noite bastante agradável. O alemão, da minha idade, parecia estar interessado em caminhar comigo no dia seguinte, mas não era isso que eu queria. Tentei identificar o porquê de não querer caminhar com ninguém. De início pensei que depois de perder a Viviane, que não queria caminhar com mais ninguém a tempo inteiro. Mas não era isso. No dia seguinte a etapa seria longa. Seriam mais 40km a caminhar, e eram raros os peregrinos que caminhavam tanto num só dia. Sabia que a maioria deles, naquele albergue, não os iriam fazer, se é que alguém os iria fazer. Não queria conhecer ninguém em demasiado em Carrión de los Condes. E realmente, no dia seguinte, veio a provar-se que tinha razão.

Acabei por beber praticamente toda a garrafa de vinho. Os escoceses já tinham bebido a deles e aceitaram só um copo. O alemão estava só determinado em beber cervejas de meio litro. Fiquei muito alegre. Falava com todos hehe.

Deitei-me às 22:00. O dia seguinte iria ser longo.

segunda-feira, 29 de outubro de 2007

Dia 14: Hornillos del Camino - Boadilla del Camino

Começámos a caminhar às 7:00, ainda de noite. Os 10km até Hontanas são um deserto desolador. Começámos a imaginar como seria fazê-lo no dia anterior, sob o sol abrasador, sem qualquer sombra à vista. Até que não foi má ideia ter ficado em Hornillos del Camino. A meio do percurso para Hontanas, encontra-se o albergue de San Bol, completamente isolado. Penso que no dia anterior, muitos não lhe devem ter resistido. Juntámo-nos a Isabel, uma espanhola que conhecemos no dia anterior. A Isabel, como a maioria dos Espanhóis no Camino, fazia-o por etapas. Em cada ano, tirava uma semana de férias para o Camino. Este ano tinha começado de Burgos, onde tinha terminado no ano anterior. A Isabel acabou por acompanhar a Viviane até ao final da sua semana no Camino.

Nascer do sol a caminho de Hontanas

Os últimos quilómetros até Hontanas estavam queimados devido a um incêndio recente. O solo, preto e desolador, cheirava a queimado. Parámos em Hontanas para um café solo.

Chegada a Hontanas

Hontanas

De Hontanas a Castrojeriz a paisagem é bastante mais simpática. O percurso fez-se rapidamente. Ao nosso grupo juntou-se um Francês que falava Espanhol fluente. Nunca me recordava do seu nome, e hoje, está mesmo perdido na memória. Viria a falar ainda bastante com ele. Irei mencioná-lo mais tarde apenas como "o Francês".

Isabel e o Francês a caminho de Castrojeriz

A partir de um certo tempo no Camino, reparei que tanto eu como todos os outros peregrinos deixavam de se preocupar com os nomes. Travávamos conhecimento com alguém, e uma das primeiras coisas que perguntávamos era o país. "De onde ès?". "Were are you from?". O nome era irrelevante. Para quê? Provavelmente iria ser esquecido. Havia coisas mais interessantes para saber e para contar. Não era de forma alguma um gesto de desinteresse. Cheguei a passar dias com peregrinos de quem nunca soube o nome e os quais nunca souberam o meu. A minha identificação era fácil. Era "o Português". Era o único.

Ruínas do Convento de San Antón

Nos últimos quilómetros de Castrojeriz, a Viviane meteu o piloto automático. Era normal. Ignorando as dores e eliminando as pausas, caminhando mais rápido, já com a perspectiva do albergue à vista. Eu não podia pensar assim. No máximo estaria a metade do caminho para aquele dia. Andava mais rápido a acompanhar a Viviane, mas com algum cuidado. A Viviane tinha tomado de manhã um relaxante muscular e um analgésico e conseguia caminhar melhor do que no dia anterior.

Chegámos a Castrojeriz. Era o local da despedida. Tinha que descansar um pouco os pés e comer algo. Eles tinham chegado ao final da etapa do dia. Eu ainda tinha 25km pela frente. Parei num bar com jardim e esplanada. A Viviane tinha que prosseguir para o albergue de modo a conseguir lugar. Despedimo-nos no bar. Tinha a certeza que nunca mais voltaria a ver a minha companheira de Camino. Estava novamente só.

Castrojeriz ao longe

Passei por Castrojeriz lamentando não poder ficar. Via todas as caras conhecidas do Camino já sem mochila, regressando de uma "tienda" ou passeando pelo pueblo. Saí de Castrojeriz às 13:00. Um calor enorme. Tinha reparado no mapa que havia um desnível à saída de Castrojeriz, mas não tinha ligado muito. Foi a subida mais difícil que fiz em todo o Camino. Foi ridículo! A subida consiste em um pouco mais de 100 metros, mas em apenas 500 metros de comprimento.

Saída de Castrojeriz. O monte a subir surgiu como que uma parede.

No sopé do "monte" encontrei a Steffi, uma alemã instalada à sobra de uma árvore. A última árvore dos próximos quilómetros. Deve ter ficado ali por mais de uma ou duas horas, pois não a voltei a ver nesse dia. Devia de ter feito o mesmo. Não consigo contabilizar as vezes que parei. O sol impedia-me de dar muitos passos. Caminhava lentamente, quase em câmara lenta. Havia uma brisa que por vezes se transformava num bafo quente enchendo os pulmões de ar quente insuportável. Olhava com preocupação para os meus braços. Começaram a ficar cheios de bolhas de água devido ao sol tórrido. A pele começava a estalar. Tentei não entrar em pânico, mas era desesperante. Era diferente de todos os outros dias, pois não havia o conforto psicológico de ter peregrinos por perto. Ninguém à minha frente. Atrás, conseguia ver a estrada até Castrojeriz, bem longe. Ninguém em todo o Camino. Estava totalmente só. Era o meu primeiro dia a caminhar "fora das etapas" e não estava à espera. Mais quatro lentos passos. Vento quente. Pausa. Mais um golo de água. Suava por todos os lados. Cheguei ao topo. Olhei para o relógio. Eram 14:00. Tinha demorado uma hora a subir. Foi um alívio ter conseguido.

A subir para o Alto de Mostelares. Uma nuvem tapa por minutos o sol. Castrojeriz ao longe. Ninguém no Camino.

Na descida, enormes nuvens taparam temporariamente o sol e deitaram umas gotas de chuva, apenas para salpicar o Camino. Era assim o tempo no Camino. Novamente no deserto amarelo. Até onde a vista alcançava só via amarelo. A única coisa que se movia era as ondas de calor perto do chão, quando se olhava para o horizonte. Numa das setas do Camino, algum peregrino escreveu uma frase. Algo em espanhol como "Peregrino, mira el mar de flores de todas las colores". Não sei se ri ou se chorei. Imaginei por momentos como seria aquelas planícies na primavera, sob uma brisa fresca, com verde e flores de todas as cores. Mas agora, tudo o que via era um deserto amarelo, a brisa era quente, a minha roupa estava molhada com a transpiração, os meus braços estavam assustadores, e não via vivalma nem tinha ideia de quando iria encontrar a próxima povoação.

O outro lado. A descida. Ninguém no Camino.

Olhei para trás. Um peregrino! Tinha iniciado a descida do monte. O alívio foi enorme. Porquê? Estava habituado a caminhar com a Viviane. Sempre que ficava um pouco para trás ouvia sempre um "estás bem?". Se caminhava um pouco mais afastado, haviam sempre inúmeros peregrinos pelo Camino. Ali estava só, sob condições difíceis. Psicológicamente é muito mais duro. E não estava a contar com isso. A imagem daquele peregrino, embora a quilómetros de distância era tão refrescante como ter encontrado ali uma cascata de água. Continuei mais confiante. Finalmente, ao longe, vi árvores. Era uma fonte! Estava a racionar água novamente, e praticamente já não tinha nenhuma. Ao aproximar-me deparei-me com um cenário quase de miragem no deserto. No meio do camino estava a "bicicleta" de Bernard, e este estava junto da fonte a falar com uma jovem peregrina semi-nua. Tinha tirado todas as roupas para se refrescar na fonte e estava coberta apenas por uma pequena toalha que de vez em quando descaía. Era irreal. O peregrino que tinha visto ao longe chegou. Era uma mulher Francesa que me acompanhava desde o primeiro dia. Fazia o Caminho com Michele, um Francês, mas este tinha terminado a sua etapa em Burgos. Faziam o Camino em quatro etapas, uma por ano, desde Paris até Santiago de Compostela. Duas etapas em França e duas em Espanha. Mais tarde iria falar melhor com a Francesa, que mais uma vez não me recordo do nome.

Caminhámos juntos até à Ermita de San Nicolás. Era um albergue. Ela iria ficar aí. Entrei para a ver e descansar um pouco. Na mesa, já a finalizar um almoço, encontravam-se os resistentes do grupo italiano, que não tinham terminado ou pulado o camino em Burgos. Sentei-me um pouco. Estava muito cansado. O hospitaleiro fez-me desejar ali ficar. Aos poucos ia-me oferecendo coisas. Almoço, vinho, café. Recusei tudo. Não podia ficar ali. Não podia parar ali. Ainda estava muito longe de Frómista e começava a ficar tarde. Na altura pensava que estava a ficar tarde. Tarde para quê?! Segui para Itero de la Vega.

Ermita de San Nicolás

Embora tivesse recusado o almoço na Ermita, tinha que comer algo. Passei por um albergue onde o dono me perguntou se queria ficar. Perguntei apenas como era o camino até Boadilla. Ele apontou para um monte à distância, e percebi que era mais ou menos aquela distância, sem árvores. O que me estava a dizer, que só percebi mais tarde, é que tinha que passar por aquele preciso monte, e ainda tinha muito mais para caminhar do outro lado. Eram 9km. A partir deste dia, comecei a criar a noção de quanto tempo demoraria a percorrer um determinado número de quilómetros consoante o passo que levava. A marca de nove quilómetros de Itero de la Vega até Boadilla del Camino ficou para sempre registada na minha mente como um marco de dificuldade. Se faltavam nove quilómetros, consoante o meu cansaço, conseguia determinar se iria ou não conseguir.

Estava exausto. Decidi entrar num café para comer algo rapidamente e descansar um pouco. Perguntei ao balcão se tinha "bocadillos ou algo para comer". Pronto... tinha cometido o erro fatal em Espanha, que é o de falar com um espanhol com sotaque e talvez incorrecto e dizer a palavra mágica "comer". Eles não ouvem mais nada. Em Espanha, pequeno-almoço é "desayuno", jantar é "cena" e almoço é... "comida". Logo, perguntar se tem alguma coisa para comer, naquelas condições, é perguntar se tem alguma coisa para almoçar, e almoçar em Espanha, é refeição de dois pratos, vinho e "postres". Mas na altura não me apercebi disso. Imediatamente, o empregado do café apontou-me para um homem que estava no balcão, que me acenou para ir com ele. Foi esquisito, no mínimo. Segui-o para fora do café, atravessámos a rua e entrámos num albergue privado, para uma sala de jantar. Serviu-me um almoço de dois pratos, e isto sem eu dizer nada! De início tinha ideias de me ficar apenas pelo primeiro prato, mas... não me tinha apercebido de como estava com fome! Gosto de pensar que esta situação insólita foi mais uma das estranhas ajudas do Camino, devido ao que aconteceu de seguida.

Bem cheio, segui viagem, novamente sem qualquer peregrino à vista. Eram 16:00 e o sol parecia ainda tão forte como se fossem 14:00. Tinha 9km pela frente sem sombras. Apenas umas árvores no topo da colina à minha frente. Deviam ser uns 4km até lá. Ocasionalmente passavam por mim alguns peregrinos de bicicleta, dando-me algum ânimo, mas rapidamente desapareciam por trás do monte. O monte parecia-me tão longe. Desesperava novamente por caminhar só, naquele calor. Pareceu-me uma eternidade para o topo do monte. Tencionava descansar um pouco nas árvores que via à distância, mas ao aproximar-me, vi vultos. Eram peregrinos! Momentos antes olhei para o meu telemóvel. Tinha rede e bateria suficiente para uma chamada. O meu desespero era tal que chegou a esse ponto. Estava exausto e quase a tombar numa estrada em que não sabia se iria passar mais alguém até à madrugada seguinte. Quando vi três peregrinos a saírem das árvores senti um alívio enorme. Disseram-me que ali se descansava muito bem à sombra das árvores. Eram espanhóis, daqueles apenas com uma mochila pequena às costas, que optavam pelo transporte de carro de mochilas. Disse-lhes que não podia parar. Não os queria perder de vista. Segui à frente deles. Já não se podia chamar àquilo que estava a fazer de "andar". Deambulava. Doía-me o braço inteiro cada vez que tentava alcançar a garrafa de água na mochila. Optei por caminhar com ela na mão. Por momentos pensei que a minha mente já estava a ser afectada pelo sol. Pela primeira vez, fiz a mim próprio a pergunta que já tinha ouvido de outros peregrinos "o que é que estou aqui a fazer?". De seguida, surgiu a pergunta fatal. Surgiu naturalmente. Estava sem forças. Tentava parar para descansar e as recuperar, mas tinha atingido aquele ponto em que não conseguia recuperar do cansaço. Não adiantava parar. O ritmo da respiração não baixava. Não conseguia descansar ali. Não tinha forças. Onde iria buscar forças que não tinha? Era essa a pergunta. E pensei muito sobre isso nos dias seguintes. Na altura pensei em muitas coisas. Era ali. O momento em que o limite das forças físicas forçaram a mente a ir por caminhos estranhos e diferentes. A pensar apenas naquilo que interessa. Tudo o resto é supérfluo. Pensei... em muito que não vou aqui dizer. Tinha perguntado aos três peregrinos quanto faltava para chegar a Boadilla del Camino. As palavras saíram-me arrastadas. Disseram-me 4km. "Una hora e média". Não! Tanto! Ao fim de não sei quanto tempo, consegui ver um edifício de Boadilla ao longe. Uma torre de água? Não sabia. Já não conseguia focar bem a vista. O calor e o sol eram tão fortes. Quase 40km sempre ao sol. Como pude ser tão descuidado? Confiante na resistência já ganha no Camino, tinha ignorado por completo a força do sol. Uma longa recta. Outra a seguir. A torre de Boadilla estava cada vez mais perto. Finalmente as árvores. Tombava em cada passo. Boadilla! Tinha chegado! Caíram-me lágrimas dos olhos. Tinha conseguido.

Saída de Itero de la Vega

Logo na entrada, à esquerda, vi a palavra "albergue" escrito num edifício. Fui até lá. Era um barracão sem qualquer espécie aparente de conforto do exterior. Não queria saber. As portas estavam fechadas. Dois velhos sentados num banco disseram-me que estava "cerrado". Havia outro junto à igreja. Conseguia ver a torre dela. Segui para lá. Vi o albergue municipal. Entrei. Se o albergue estivesse cheio, iria implorar por um lugar no chão. Não conseguia andar mais. Não podia mais. A sair do albergue estava David. "Well! I've been here since 13:00, and there's only three people in here. You're the third.". Hahahaha quase que o abracei. Eram 18:00. Só três pessoas! O albergue tinha apenas 12 camas. Era minúsculo. A hospitaleira estava sentada no banco, no lado de fora. Nem a cumprimentei ao passar. Estava agora alojado. Ao ver o meu estado, a hospitaleira disse-me para beber muita água. Devo ter bebido logo uns 2 litros de água. A minha testa estava cheia de sal. Ainda não estava salvo. Sabia bem o que me podia acontecer. Mas já estava preparado. Comi um bolo que tinha na mochila e de seguida, meio pacote de amendoins com sal. Sempre a beber imensa água. Tomei um duche e finalmente estabilizei. Estava tão cansado que nem tinha forças para escrever no diário. Deitei-me um pouco para recuperar alguma força. Comi sem fome algumas coisas que tinha na mochila. Não tinha forças para sair do albergue. O David foi jantar ao albergue privado de Boadilla, que estava lotado. Eram aí que estavam todos os que ali tinham ficado. Pelos vistos é um albergue referenciado do Camino. Mas não queria saber. Estava no albergue ideal para mim. Calmo e sossegado, para descansar. Ao cair a noite, começou a chover e a trovejar. Adormeci antes das 22:00. Finalmente.

Vista do albergue. Quase a começar a chover.

domingo, 28 de outubro de 2007

Dia 13: Burgos - Hornillos del Camino

Apenas olhei para o mapa do percurso, nessa manhã, ainda no albergue. A etapa do dia, pelo meu guia, indicava como destino a vila de Castrojeriz. Foi então que reparei. Eram 38km até Castrojeriz! Tinha que ser um erro do guia. Não podiam haver distâncias assim tão grandes para as etapas de um só dia. O guia da Viviane dividia a etapa do meu guia em duas, chegando só a Castrojeriz no dia seguinte. Não era nenhum erro do guia. Folheei o guia e constatei que para além dessa etapa, existia uma outra com 40km. O guia dividia o Camino de Saint Jean Pied de Port a Santiago de Compostela em 31 etapas, e de Santiago de Compostela a Finisterra em mais 3 etapas, dando um total de 34 dias a caminhar.

De manhã, ao caminhar, saboreei os primeiros passos sem qualquer tipo de dor ou incómodo. Mas passados uns 500 metros, a dor no tendão da perna despertou. Mesmo assim, talvez fosse capaz de percorrer aquela distância de quase 40km. Mas a Viviane não. Estava muito em baixo. Os pés doíam-lhe como nunca. Caminhava lentamente.

Perguntámos aos que seguiam caminho connosco para onde iriam nesse dia, e todos respondiam "Hornillos del Camino". Decidimos finalizar aí a etapa. Tinha acabado de aumentar o tempo do Camino para 35 dias. Não estava a gostar da sensação de atrasar o Camino. Teria que rever muito bem o meu guia quando chegasse a Hornillos del Camino.

Parámos para um café solo em Tardajos. Na noite anterior tinha havido a fiesta do pueblo. Alguns dos participantes, conservados pelo álcool, ainda se mantinham em pé, e muito bem dispostos. Tive que usar do meu melhor espanhol para convencer um deles que teimava em me dar boleia no seu "coche" com ar condicionado para o próximo pueblo, que queria ir a pé e não de carro.

Tardajos. Era sempre surpreendente ver num mapa a distância que já tinhamos percorrido a pé

Em Rabé de las Calzadas, uma freira perto da igreja, oferecia aos peregrinos que passavam pequenas medalhas presas a um fio branco, perguntando sempre o país de onde eram os peregrinos.

Freira em Rabé de las Calzadas

A partir daí, começou o que chamo de "deserto" e o que a maioria chama de "mesetas". Em Burgos, perdemos muitos dos peregrinos que nos acompanhavam. Todos esses apanharam um autocarro de Burgos até León, passando assim o "deserto" do Camino. Mais uma vez não conseguia compreender essa forma de fazer o Camino. Isso para mim era impensável. Mais tarde, às portas de Santiago de Compostela, no Monte do Gozo, jantei com um australiano que também saltou o Camino de Burgos a León, e estava arrependido por o ter feito. Ainda mais porque o irmão dele fez todo o caminho e disse-lhe que aquela parte do Camino era essencial para a experiência do todo, e que foi precisamente aquela parte do Camino que o marcou mais. Achei curioso, pois comigo sucedeu precisamente o mesmo.

Viviane a caminho de Hornillos del Camino

Estava então à minha frente um deserto amarelo de searas cortadas a 10 centímetros do chão, e um chão castanho e amarelo de terra batida. Não se via mais nada até onde a vista alcançava. O sol esteve encoberto de manhã, mas de tarde estava abrasador. Nem uma única nuvem no céu.

"O Deserto"

Finalmente vi Hornillos del Camino lá em baixo. Ao ver o pueblo ao longe, tive a primeira indecisão se deveria de continuar ou ficar ali. A Viviane seguia-me a 1km atrás. Nesse dia estava a ter muitas dificuldades. As dores nos pés eram enormes. Decidi ficar. Mas não iria cortar mais etapas. Aquela sensação de ter ficado ali estava-me a incomodar. Se estivesse só, teria continuado.

Descida para Hornillos del Camino

Morri de tédio em Hornillos del Camino. O pueblo é apenas uma rua com casas, o albergue, um café, e uma "tienda". Nada mais. Ainda por cima, a Viviane estava arrasada e esteve a tarde toda a dormir. Parecia que todos os alemães decidiram ficar ali e todos os restantes seguiram em frente! Não encontrava praticamente nenhuma cara conhecida com quem falava. Na generalidade, e não gosto de generalizar estas coisas, mas no meio de tantas pessoas de diferentes nacionalidades, notei que os alemães são muito frios no contacto. Não significa que sejam antipáticos, muito pelo contrário, mas para estabelecer uma relação com algum deles, é muito, mas mesmo muito difícil.

Hornillos del Camino

Mas nem todos tinham seguido em frente. O Yves ficou por ali. E claro, o Luís, mas esse já mal falava comigo. O Dénis tinha-se constipado de noite, em Burgos. De manhã disse-me que estava muito cansado devido à constipação. Vi-o parar às portas de Burgos, e foi aí que deixei de o ver. Ainda conheci melhor o José e a Isabel, uma espanhola que iria começar a caminhar connosco no dia seguinte.

Continuava aborrecido por ter parado ali e não ter continuado. Decidi fazer contas. Nunca as tinha feito. Calculei a data de chegada a Finisterra, mesmo se não cortasse mais nenhuma etapa do guia. Vi a data em que teria que estar em Lisboa, já a trabalhar. Nem queria acreditar. Para conseguir fazer o Camino até Finisterra, teria que recuperar um dia! Tinha tirado cinco semanas de férias, julgando ser mais que suficiente para o Camino. Na minha ingenuidade, até pensei que ainda teria alguns dias para descansar em casa. Mas... 31 dias até Santiago, 3 até Finisterra, 2 de viagem até França, 1 de viagem para regressar. Totalizavam 37 dia. As 5 semanas. E estava atrasado.

Examinei pela primeira vez todas as etapas do meu guia, com muita atenção. Tinha que planear a recuperação de um dia. Não queria perder a maioria dos pueblos e cidades em que terminavam as etapas. Para além disso, havia outro factor, a Viviane tinha que estar no dia 30 em Santiago de Compostela. Teria que apanhar um autocarro para cortar alguns dias do Camino. E tencionava cortar algures entre Burgos e León. Verifiquei novamente o guia. Estava decidido. No dia seguinte, iria caminhar os 18km até Castrojeriz, e ainda os 25km da etapa do dia seguinte, até Frómista. Se não conseguisse fazer esses 43km, iria ficar em Boadilla del Camino, a 6km de Frómista, e recuperaria esses quilómetros no dia seguinte, até Carrión de los Condes, numa etapa curta de 19km, fazendo 25km. Era a altura ideal para recuperar o dia... pensava eu. Continuava com a noção predefinida das etapas bem delimitadas. Sabia que a Viviane não iria comigo. Quando acordou, contei-lhe o que tencionava fazer. Ela iria ficar em Costrojeriz.

Albergue de Hornillos del Camino

Nessa noite jantámos no único restaurante do pueblo que devia o nome ao seu dono actual, "Manolo", em frente ao "galo delator". O dia seguinte iria certamente ser diferente. No fundo, já começava a ansiar por uma mudança no Camino. Não me queria separar da Viviane, mas não iria ser mau de todo.

sexta-feira, 26 de outubro de 2007

Dia 12: San Juan de Ortega - Burgos

A ressaca era enorme! Logo de manhã, na casa de banho, encontrei o Yves. Viviane tinha-me dito que o Yves era um médico com uma crise na profissão. Começara a questionar a medicina convencional. Não concordava com muitos aspectos daquilo que exercia. Penso que também estaria no seu Camino próprio e pessoal. Perguntou-me como estava e mencionei a dor de cabeça tremenda. Recomendou-me imensa água. Ter um médico pessoal no Camino tranquiliza bastante. Acaba logo com os bichinhos a imaginar filmes.

Já era a terceira vez no Camino que a pessoa certa estava ao meu lado para me ajudar em dificuldades. Primeiro o Alfred com as pastilhas de magnésio. Depois a peregrina francesa com o Voltarem. Embora tivesse dito na altura que o Voltarem Gel e o Voltarem Rapid não tivessem feito nada, não quero imaginar como teria ficado se não os tivesse tomado. E agora o Yves, um médico, numa quebra de tensão.

Gosto de pensar nas sucessões de acontecimentos, em que os bons são sempre equilibrados com os maus. Se nunca tivesse conhecido a Viviane, nunca saberia que Yves era médico. Se não me tivesse deitado naquele banco de jardim, uma enfermeira Francesa nunca teria ido ter comigo, perguntando se precisava de ajuda. E por sua vez, ela nunca teria sabido que Yves era médico, nunca lhe chegando a perguntar por um tornozelo dorido e inchado. Yves ficara alarmado. Era uma inflamação grave, em que iria necessitar de pelos menos uma semana de fisioterapia, se parasse de caminhar imediatamente. Lembro de ela ter passado por mim mais tarde naquele dia, em que muito tristemente me disse "for me, tomorrow, auto-bus". Compreendia a dor dela. A dor física conseguíamos suportar todos os dias, em todos os passos. Mas aquilo era maior que qualquer dor. O fim do Camino antecipado. Ser obrigado a parar. A desistir.

Era um enorme privilégio poder estar no Camino, e sentia-o todos os dias. Ser obrigado a sair dele, era quase como se nos obrigassem a negar a nossa condição humana, tudo aquilo que está nos nossos genes. Quase como que uma herança. Aliado ao facto de ser algo desejado e planeado, era terrível a sensação de ser obrigado a desistir. De o nosso corpo não aguentar. De ser colocado de fora por um método semelhante ao de uma selecção natural, vendo outros a conseguir e prosseguir. Vi esse sentimento várias vezes na cara de peregrinos.

Manada de vacas no meio do Camino. Muitos bezerros acompanhados pelas suas mães vigilantes. Tivemos algum cuidado.

O albergue oferecia desayuno a partir das 6:00. Chegámos às 7:00. Tinham acabado de fechar as portas. Bolas! Precisava de comer. Comi as minhas últimas duas fatias de pão integral com queijo e chourição e dividi a última das madalenas com a Viviane. No dia anterior, um Francês, ao ver o meu estado, tinha oferecido um saco com madalenas. Até presunto se ofereceu para dar. A mulher dele estava a fazer o Camino a pé, e ele acompanhava de carro. Parava em todos os pueblos para uma peregrinação de "degustação", como referiu, e tinha alguns "espólios" da sua peregrinação no carro para me oferecer.

O dia fazia lembrar a partida de Saint Jean Pied de Port e a passagem pelos Pirinéus. Caíam ocasionalmente alguns pingos, mas não obrigavam a vestir a capa para a chuva. O nevoeiro era cerrado. Parámos em Agés para um pequeno-almoço mais composto no "El Alquimista". Nome inspirado no Paulo Coelho? O serviço era dolorosamente lento. Demorámos uma hora para tomar o pequeno-almoço. Mais cedo ou mais tarde, todos chegavam à mesma conclusão, de que os Espanhóis só atendem a uma tarefa de cada vez, e ficam ofendidos se alguém lhes pede algo durante a lenta execução da tarefa que efectuam. Mesmo se esse algo for igual àquilo que estão a fazer! É desesperante. Depois de pagar uma fortuna de 5€ por um bocadillo de pão acabado de sair do forno com um excelente queijo acompanhado de um café con leche, partimos para o Camino.

Agés com El Alquimista por trás. Placa a indicar Santiago a 518km.

Viviane a desesperar no El Alquimista pelo serviço leeeeeeentooooo.

Caminhava lento. Não estava confiante nas minhas capacidades. No dia anterior até já tinha arriscado um sprint final até San Juan de Ortega, nos últimos quilómetros. Nessa manhã, nem arriscava com segurança a subida que encontrei para Atapuerca. No topo da colina encontrámos uns curiosos círculos de pedra. O nevoeiro permanecia.

Círculos de pedra

Em Villalval parámos para um café solo. Encontrava-se sempre alguém conhecido nos cafés. Era engraçado chegar a um café numa aldeia perdida no meio do nada, onde nunca tivemos, e começar a cumprimentar toda a gente que se encontra no café. Ainda me lembro, dias mais tarde quando a Gordana chegou a um desses cafés e após alguns cumprimentos, olha em volta e sai-se com um "Oh my god! I know everybody!". Sim, a peregrinação no Camino tem quase o mesmo efeito do que abusar do álcool numa festa. No dia seguinte, toda a gente nos conhece.

Sierra de Atapuerca. Moi em pose peregrino. Não gosto de fotos minhas. Coloco esta porque estou um pouco escuro.

Não encontrava chocolates ou doces em nenhum café e não tinha nada na mochila para ir comendo. Chegámos rapidamente a Villafria. Como ia sempre a conversar com a Viviane, esqueci-me completamente das horas e de comer. Eram 13:00. Parei num café em Villafria e comi o que encontrei com mais calorias. Um hambúrguer. Seguindo o conselho do Yves, comecei também a pedir refrigerantes com soda.

Viviane no ritual de mudar os pensos dos pés

A estrada que parte desse café até à entrada de Burgos, foi provavelmente o pior troço de todo o Camino. É uma recta por um passeio ao longo da estrada de quatro vias, ladeada dos dois lados por fábricas e armazéns enormes. O músculo da planta dos pés da Viviane decidiu dar esticões em cada passo que dava. Andávamos muito lentamente. O cheiro dos fumos e buzinadelas dos carros lembrava dolorosamente a vida na cidade. Foi péssimo. As nuvens dissiparam-se e o sol decidiu brilhar novamente. Finalmente Burgos. E digo finalmente, um pouco a brincar. O meu guia dava a etapa com 22km. O da Viviane com 28km. Os 6km que faltavam, que na realidade eram 8km, eram desde a entrada de Burgos até ao albergue. O meu guia só indicava as distâncias até às entradas e desde as saídas das cidades. Pormenores... foi uma brutalidade de quilómetros na cidade! Primeiro pela parte nova e as suas enormes avenidas. Depois pela parte histórica, bem mais agradável. Mas não deixa de ser pela cidade. O piso é do pior que pode haver para caminhar, de alcatrão e calçada.

A catedral de Burgos é algo de surpreendente e maravilhoso. Fiquei fascinado pela forma como surge à nossa frente, quando caminhamos pelo meio da cidade, e pelo seu detalhe.

A catedral de Burgos surge no Camino

Catedral de Burgos

Finalmente, após muito penar, o albergue! Perto da catedral, vimos a construção quase finalizada do futuro e novo albergue de peregrinos, mesmo no coração do centro histórico da cidade, como em todas as outras cidades e pueblos do Camino, e com muito bom aspecto. Infelizmente, da catedral até ao albergue actual, ainda vão 2km de distância.

Albergue provisório de Burgos

O albergue actual situa-se num parque da cidade, em casas pré-fabricadas. É realmente temporário. O banho foi de água fria, novamente. Depois dos rituais habituais, como lavar roupa, comprar comida, uma ocasional visita à farmácia, a Viviane queria entrar dentro da catedral para a conhecer. Pela primeira e única vez no Camino, estava demasiado arrasado para fazer mais fosse o que fosse. Já tinha andado 8km por Burgos, não se pode dizer que não cheguei a conhecer Burgos. Fiquei à espera da Viviane no restaurante onde iríamos jantar, bebendo um copo de vinho e actualizando o meu diário. Depois do jantar, voltámos para o albergue. Já me sentia mais forte.

quarta-feira, 24 de outubro de 2007

Dia 11: Belorado - San Juan de Ortega

Acordei um pouco antes das 6:00. Acordo sempre de noite por volta da uma ou duas da manhã. Estava habituado a dormir entre quatro a seis horas por dia. Nessa noite acordei à 1:00 com uma sinfonia roncadora impressionante! Não acordo facilmente e não me incomoda o roncar dos outros, mas aquilo era demais! O que estava no beliche debaixo da cama do roncador-mor, de um grupo de quatro ou cinco outros roncadores, teve que começar a bater na cama para o acordar. Aí as coisas acalmaram mais.

As noites nos albergues eram sempre uma incógnita no que diz respeito ao roncar. Por vezes ficávamos em quartos com 4 camas apenas. Mas o número podia subir para muito mais. Em quartos com 10, 20, 40 camas, ou um enorme dormitório único como o de Roncesvalles e Nájera, por exemplo. Em Olveiroa, uma peregrina escolheu ir dormir para o chão do quarto onde estava, apenas com seis camas, de modo a fugir de um quarto com trinta camas em que tinha localizado possíveis roncadores de peso.

Haviam roncos de todos os tipos possíveis e imaginários. Os mais caricatos eram aqueles que quando paravam, davam a ideia que o responsável por eles tinha morrido! Só podia!

A caminho de Tosantos

Tomámos o pequeno-almoço dado pelo albergue. O dia nasceu com nevoeiro. Nem demos pelo nascer do sol. Eu e a Viviane já tínhamos um processo de caminhar para que pudéssemos estar sós e também acompanhados. Caminhávamos afastados com longas pausas em silêncio, e quando queríamos falar, aproximávamos mais um do outro.

Parámos em Tosantos para o café solo. No balcão do café do albergue estava um brasileiro meio atrapalhado com o serviço. Era o segundo dia dele como hospitaleiro voluntário. Tinha acabado o caminho Aragonês em 48 dias. Iria ficar mais seis meses na Europa.

Espinosa del Camino

Em Villafranca Montes de Oca começou a grande subida da etapa, precisamente quando o sol surgiu por trás das nuvens para brilhar e aquecer. A subida não foi fácil.

Subida para o Pico Valbuena

Os quilómetros finais da descida até San Juan de Ortega foram longos, através de estradas florestais, sem um único ponto de água. Parámos numa mata para almoçar e esgotei toda a minha água que já andava a racionar nos últimos 5km. Já tinha reparado que quando o sol estava encoberto era bastante raro beber água, tendo mesmo que me obrigar a isso, mas quando brilhava bebia relativamente bastante água.

Peregrinos a caminho de San Juan de Ortega

Chegámos a San Juan de Ortega. O pueblo é pequeno, para ser generoso. Basicamente é composto pela igreja, albergue, café e uma ou outra casa. Não tem muito para ver, nem sequer tem 'tienda'. A maioria dos peregrinos, principalmente os mais novos, seguiram mais uns 6km para ficar num outro albergue. O albergue de San Juan de Ortega é o mais pobre em que já fiquei. Situa-se num edifício colado à igreja. As paredes no interior são velhas, com a tinta a cair. As camas e colchões são velhos e já viram melhores dias. Mas foi uma experiência única e não me arrependo nem por um segundo de ter ficado ali. Pela primeira vez no Camino apanhei água fria no duche. Nem sequer havia a possibilidade de haver água quente. O John deu um grito ao entrar no banho. Eu dei dois! O Luís não deu nenhum, em vez disso, deu um grande discurso de como era tudo uma questão psicológica e de método, bla, bla, bla... raios, há alguém que o consiga aturar!

Fomos dar uma volta pelo pueblo que acabou em cinco minutos. Fomos então para uma das poucas coisas que se podia fazer ali: beber cañas. Tinham minis! Ah, as saudades de uma cerveja mais parecida com a nossa. Bebemos logo duas no banco do jardim em frente à esplanada.

Minis!

Foi no final da segunda que comecei a ter uma sensação de já não comer há bastante tempo. Momentos antes, um corvo deu um grito. A Viviane perguntou-me "isto não é sinal de mau presságio?" ao que respondi "não, isso era no passado". Comecei a sentir-me estranho. Comecei a ter a vista toldada por luminosidade. Era tudo tão brilhante. As cores transformavam-se em amarelo. Disse que não me estava a sentir bem e levantei-me. Estava com a Viviane e o Michele, um Francês. Nunca tinha tido nenhuma quebra de tensão, mas imaginava que seria aquilo. Nem eu nem a Viviane sabíamos o que fazer. Ela foi buscar sal ao café. Meteu-me três vezes sal na mão para o engolir. Na terceira vez já não conseguia abrir a boca. As palavras arrastavam-se. Não queria apagar. Agarrei-me com todas as forças à realidade. Não conseguia ver quase nada. Era tudo amarelo. Tão brilhante. Mal conseguia dar um passo. A Viviane disse-me que a cor da minha cara estava verde musgo e os lábios roxos.

Foi então que a Viviane reparou que o Yves estava na esplanada do café. Correu para o chamar. Yves caminhava connosco há vários dias. Falávamos ocasionalmente com ele. Mas o motivo por a Viviane o ter ido chamar era porque Yves tinha dito numa das conversas com a Viviane, antes de eu o conhecer, que era médico. Yves soube imediatamente o que fazer. Deu-me um copo de água com 6 pacotes de açúcar. Deu-me a provar e perguntou-me se estava muito doce ou apenas doce. Estava ligeiramente doce. Meteu mais dois pacotes de açúcar. Bebi lentamente e mandou-me deitar no banco com as pernas levantadas apoiadas nos braços do banco. Tive uma consulta médica num banco de jardim. Perguntou-me por vários antecedentes clínicos, pressionou-me a barriga e o pescoço por todos os lados. Durante 30 minutos verificou ocasionalmente a minha pulsação. Disse-me que estava a recuperar. Foi buscar duas pastilhas de sal à sua mochila e deu-mas. Quando me perguntou o que tinha comido e bebido nesse dia, e dei por mim a dar a resposta, não precisei de nenhum médico para me dizer o que se passava. Fui descuidado. Estava a ser muito descuidado no Camino. No dia seguinte, em Burgos, pesei-me e constatei que tinha perdido 5kg em 12 dias. Não andava a ingerir calorias. Açúcar era mesmo zero. Comia muito pouco para aquilo que andava, e nesse dia tinha bebido muito pouca água.

Quase que falhei no Camino, de chegar a Santiago. Não imaginam como fiquei com a perspectiva de não conseguir. Não iria ser tão descuidado. Era algo que não estava à espera, mas não me iria deixar vencer. Yves disse-me que no dia seguinte partia um autocarro em frente à igreja com destino a Burgos. Disse-lhe que não, que iria a caminhar, sublinhando bem o facto fazendo o gesto com dois dedos da mão. Yves sorriu apenas. Podia ir. Disse-me para comer muito bem nessa noite e beber muita água.

Nessa noite, às 7:00, a Viviane foi à missa. Horas antes tinha falado com o padre em que na conversa lhe perguntou "logo vais à missa, não vais?". Viviane queria falar com ele, pois o livro que lhe dera a conhecer o Camino tinha sido escrito por alguém que conversara com esse mesmo padre e relatara isso no livro. Sentia-me estranho. Como se estivesse num limbo. O céu estava com uma cor castanha, o vento soprava quente e o ar era abafado. Estava prestes a rebentar uma tempestade de verão. De início não quis ir, mas ainda cheguei no final da missa. A igreja de San Juan de Ortega é uma das mais invulgares que vi no Camino. Tem algo que a torna única. Não consigo explicar o quê.

Esperava pela tradição que o padre de San Juan de Ortega mantinha já há 30 anos. No final da missa, em frente ao albergue, chamaram por "dos hombres". Fui um deles. Entrei numa cozinha onde me deram alguns tabuleiros para transportar, contendo grandes canecas e colheres. Atrás de mim, o segundo voluntário levava um enorme caldeirão com sopa de alho. Entrámos numa sala com mesas de ponta a ponta onde o padre fazia questão de servir pessoalmente cada peregrino com a sua sopa de alho, ritual que mantinha há 30 anos, todos os dias. Era também o único jantar do padre nos últimos 30 anos. Tradicionalmente o alho tem propriedades medicinais incríveis e variadas. È um excelente anti-inflamatório, entre outras coisas. A Viviane contou-me que em algumas regiões do Brasil, quando se cortam, ainda colocam alho por cima da ferida. Era uma poderosa sopa para os antigos peregrinos. E sabem que mais? Para os novos também. Aquela sopa fez-me melhor do que qualquer outra refeição que pudesse tomar.

A Viviane tem melhores fotos do padre a servir a sopa de alho. Só tenho esta de longe. É também a única foto que tenho do Yves, no lado direito, em primeiro plano, de polo branco.


Sopa de alho

No final, fui ao pequeno restaurante do café comer um prato de carne, pois tinham sido "ordens do médico". Mas quase todos repetiram várias vezes a sopa e ficaram jantados. Era deliciosa.

Ao ir para o albergue, começou a chover e a trovejar. Nunca dormi tão bem como nessa noite. Pela primeira vez não acordei durante a noite, e ás 6:00 não me apetecia acordar. Ainda fiquei a preguiçar por 15 minutos. Acordei no dia seguinte com uma enorme ressaca.

Dia 10: Santo Domingo de la Calzada - Belorado

No dia anterior, pela primeira vez, tinha caminhado sem qualquer tipo de dor pela manhã inteira. O joelho esquerdo já não me doía. Mas passado uns 12km começava a acusar dor. É difícil explicar o que é isto do "caminhar sem dor", pois existe sempre qualquer coisa. Existe sempre uma sensação latente de algo. No final das etapas o corpo dói sempre mais do que durante, ao caminhar. Mas melhorava de dia para dia. A resistência do corpo era sempre maior a cada dia que passava, o limite para caminhar sem dor ia sempre aumentando, e a velocidade a que podíamos caminhar sem consequências era também sempre maior. Era boa a sensação de nos sentirmos mais fortes.

A caminho de Grañon

Mas... como fui aprendendo ao longo do Camino, nunca desejava por uma situação melhor. Quando tinha uma dor localizada há vários dias, ficava satisfeito. Não pela dor, mas porque tinha apenas aquela dor. Essa dor obrigava-me a moderar os passos e a velocidade. Sabia que podia estar bem pior. Se aquela dor passasse, havia uma probabilidade bastante grande de surgir uma outra bem pior num outro sítio qualquer. Neste dia aconteceu. Um tendão na região do pé e tornozelo começou a doer de manhã. À tarde a dor era enorme. Continuava a tomar Voltarem.

As piores lesões que via durante o caminho eram de peregrinos em óptimas condições físicas. Quase todos desportistas, mas infelizmente, pouco habituados a caminhar. Quando alguém se sente fisicamente apto para o que der e vier, principalmente para uma coisa "fácil" como caminhar, tende a caminhar muito por dia, e rápido. Encontrava muitos peregrinos que também tinham partido de Saint Jean Pied de Port, dias depois de mim, e já se encontravam ali, ao meu lado. Deixava de os ver... por uns dias. Até que os apanhava, a coxear ou a recuperarem numa cidade por alguns dias, parados. As lesões eram quase sempre relacionadas com tendões. Muitos deles de ruptura mesmo, mas a grande maioria de inflamações graves. Praticar um desporto, mesmo que seja um de grande esforço, é bastante diferente do que caminhar durante vários dias, com uma mochila, sem pausas. Não há recuperação. Não há um dia para os músculos e tendões recuperarem do esforço. Num dia caminha-se 30km, no outro 20, 40, 25, 35, 40, 27, 34, 37, 40, 20, 24, 26, 34, 40, 32, 28, ... estão a perceber a ideia.

Acordámos às 6:30, já um pouco tarde. A Viviane quis beber um café com leite no café ao lado do albergue, e à saída, quase que paralisámos. Estava o Luís. Felizmente o Luís finalmente tinha-se apercebido da situação. A partir daí, só o cumprimentávamos à distância.

Café solo em Grañon

Chegámos a Grañon onde bebi o café solo. A fama do albergue de Grañon era grande pelos peregrinos, e houve alguns que decidiram ficar por ali mesmo, caminhado apenas 7km nesse dia. Na altura ainda não me fazia sentido caminhar tão pouco num dia. Ainda tinha a ideia de etapas muito bem definidas no Camino. Se o fizer novamente, irei com uma visão bem diferente das etapas a percorrer.

Campo de girassóis

Entre Grañon e Redecilla del Camino passámos a fronteira de La Rioja para Castilla y León. Em Redecilla del Camino queríamos ver a famosa pia baptismal da igreja Virgen de la Calle, mas esta tinha sido removida e encontrava-se temporariamente numa exposição em Ponferrada.

Fronteira para Castilla-León

Em Viloria de Rioja parámos para almoçar e demos praticamente toda a nossa comida a um cão com olhos de pedinte. Os cães dos cafés ao longo do Camino são muuuito espertos. Sabem que cada peregrino que passa é um potencial sinal de refeição. Até os gatos!

Chegada a Viloria de Rioja

Antes de chegarmos a Belorado, um carro parou ao nosso lado para nos dar um cartão. Era bastante comum ao longo do caminho. O cartão publicitário era de um novo albergue privado à entrada de Belorado. Continha, como sempre, o preço, fotografias, e uma descrição tentadora para quem já caminhara muito nesse dia. Passámos pelo albergue com a sua piscina enorme quando chegámos a Belorado. Decidimos ir para o último albergue de Belorado, o dos "Cuatro Cantones". Foi uma excelente escolha. As condições eram excelentes, jardim com esplanada, piscina, varanda no quarto. Quase parecia um hotel. Faltava-lhe um pouco daquela "tradição" que procurava sempre nos albergues. Mas tínhamos passado pelo albergue paroquial, e pareceu-me que não perdíamos muito em o passar por esta vez.

Vista da varanda do quarto para a piscina e jardim do albergue

Quarto do albergue

Enquanto a Viviane ficou actualizar os últimos seis dias do seu diário, fui conhecer um pouco de Belorado. Belorado é a cidade com a maior concentração de bares na parte velha da cidade que tínhamos encontrado até à data. Nada que se compare a León ou até mesmo a Astorga, como mais tarde constatei. Após caminhar um pouco, encontrei a placa que apontava para as ruínas do castelo, por trás do albergue paroquial. Estava de chinelos e a subida é bastante inclinada. Temia mais a descida do que a subida, e tinha que avaliar sempre se iria conseguir descer com os chinelos. Cheguei apenas até à base das pedras do castelo. Não iria arriscar mais sem as botas. A vista sobre a cidade é fenomenal! Consegue-se ver toda a cidade e os campos circundantes até onde a vista alcança. Como sempre, as fotos não fazem justiça nenhuma.

Vista das ruínas do castelo de Belorado

Jantámos no albergue. Durante o jantar conversámos imenso com o dono do albergue, Nicolás. Era mais um dono de albergue "convertido" pelos peregrinos brasileiros. Quando chegámos, vimos a bandeira do Brasil pendurada no lado de fora do albergue. No interior, imensas fotos do "Caminho do Sol" no Brasil, em que Nicolás participou. Encontrei mais do que um albergue em que o seu dono ficava amigo de peregrinos brasileiros e ia visitar o Brasil, participando inevitavelmente no Caminho do Sol, um dos muitos caminhos mais conhecidos que se pode fazer no Brasil.

O caminho para as ruínas do castelo ficam por trás

Mais tarde, a Viviane ainda pediu uma massagem que era dada no albergue. Deitámo-nos às 22:00.