quinta-feira, 22 de novembro de 2007

Dia 22: Rabanal del Camino - Molinaseca

Fui um dos primeiros do quarto a acordar. Eram 6:00. Também fui um dos primeiros do albergue a sair. Não vi as horas, mas ainda era noite cerrada. Acendi a lanterna várias vezes para iluminar as marcas do Camino no escuro.

Já era tempo de reformar o meu "cantil". As garrafas de água saíram comigo de Portugal. Ainda estavam em bom estado, não?

Saída do Rabanal del Camino com a torre da igreja recortada no clarear do dia.

Quando saí do Rabanal del Camino, via-se o clarear no horizonte, uma faixa clara sob a noite. Esta melodia não me saiu da cabeça até chegar à Cruz de Ferro:




Quase que estabelecia o ambiente. Estava tudo tão sereno. Tão calmo. Logo no primeiro passo desde a saída do albergue o Caminho faz-se a subir. Sempre a subir. A manhã estava fria devido ao vento que sopra naquela altitude. À medida que o dia ia nascendo, desejava ao máximo alcançar o ponto mais alto possível, de modo a poder ver o nascer do sol. Não o consegui, apesar de acelerar o passo. Na altura não o sabia, mas era fisicamente impossível. O topo ainda estava distante.

Nascer do sol

Fiquei fascinado pela paisagem durante todo o dia. Era deslumbrante. Talvez os Pirinéus superassem os Montes de León, mas para mim os Pirinéus foram... o que foram. Até à data, esta foi a melhor etapa do Camino em termos de paisagem, para mim e para outros com os quais falei. Fazendo uma perspectiva de todo o Camino, penso que consigo eleger este como um dos melhores percursos, juntamente com a subida e o topo de O Cebreiro e todo o percurso desde que se vê o oceano, do Crucero da Armada até Finisterra.

Ficava por alguns momentos parado, quase que hipnotizado pela paisagem. Cada quilómetro era uma nova maravilha. Até ao dia anterior estava com um pouco de temor em relação a Foncebadón. A Viviane contou-me que no livro que lera sobre o Camino, Foncebadón era uma aldeia fantasma. Totalmente desabitada, abandonada e em ruínas, tinha-se tornado a casa de inúmeros cães selvagens, bastante hostis com intrusos, onde se incluíam os peregrinos que tinham que por lá passar. Relatos de peregrinos a serem emboscados em Foncebadón por matilhas de cães raivosos eram frequentes. No entanto, tinham-me dito no Rabanal que Foncebadón tinha pelo menos três albergues. A aldeia tinha sido revitalizada. Ressuscitada.

Foncebadón à distância

Quando entrei em Foncebadón reparei imediatamente num albergue com a agitação habitual da manhã no seu interior. Entrei e aceitei o café e "galletas" que ofereciam mediante um donativo de 1€. Encontrei o Francês, que me explicou que Foncebadón já não era mais o pueblo abandonado e temido do passado, apesar da sua população ainda muito reduzida. Os únicos cães "raivosos" que existiam eram os quatro cães pachorrentos do albergue, bastante amistosos. Fumei um cigarro sentado à mesa de madeira no lado de fora do albergue. A manhã estava gelada, de um modo refrescante. Fez-me pensar como seria estar por aqueles lados no Inverno.

Entrada em Foncebadón

Foncebadón

Segui caminho. Ainda faltavam uns quilómetros até á Cruz de Ferro. Sempre a subir, atingi-a, um dos pontos relevantes do Camino. Situada num dos pontos mais altos do Camino, encontra-se a "Cruz de Ferro" no topo de um poste de madeira de uns seis metros. Os peregrinos costumam trazer de casa uma pedra simbolizando toda a sua tristeza e angústia, e deixá-la na base da Cruz de Ferro, no imenso monte de pedras deixadas por outros peregrinos. Não são só pedras que são deixadas. No poste de madeira, encontram-se imensos pedaços de história pessoal de peregrinos que por ali passaram. Mas eu não tinha nada para ali deixar. Tinha pensado num acto semelhante, mas apenas faria sentido quando chegasse ao último pedaço de terra antes do oceano. Aí sim, iria atirar para o mais longe possível, para que nunca mais a pudesse ver. Mas não seria uma pedra.

Cruz de Ferro

Descansei um pouco na eremita junto à cruz. Existia uma espécie de relógio de sol no chão, junto à Cruz de Ferro, mas o sol estava longe para que alguma sombra incidisse nele. Não percebi muito bem a sua lógica e funcionamento.

A caminho de Manjarín

Depois da Cruz de Ferro, já quase no topo do monte Irago, encontra-se outra das pérolas do Camino, Manjarín, formado apenas por um único albergue. É a única casa habitada do pueblo. Entrei juntamente com a Julia, depois de lhe ter pedido para me tirar uma foto junto aos sinais de destinos e distâncias na entrada do albergue.

Manjarín

Falámos um pouco enquanto bebíamos café e comíamos as galletas que nos foram dadas após um donativo ao hospitaleiro do albergue há mais de 14 anos, Tomás, o hospitaleiro templário. O albergue de Manjarín, para além da personagem conhecida de Tomás, tem as suas... particularidades. Muitas mesmo! Se soubesse, teria planeado a poder ficar por ali, apesar de não terem duche… entre outras coisas mais.

Tomás no albergue de Manjarín

Perguntei ao Tomás onde era o "servicio", o qual me indicou que era do outro lado da rua. Do outro lado da rua?! Encontrei a casa de banho. Uma estrutura em ruínas, parcialmente de madeira, elevada a uns dois metros do chão, com uma tábua levantada no chão! Acho que a casa dos meus bisavós paternos tinha algo do género. Bem... é uma sensação interessante estar a mijar de pé, com a cabeça a elevar-se por cima da porta de madeira, e a cumprimentar sorridente os peregrinos que passam ao lado na rua, a poucos metros de distância com um "buen camino". Quando mostrei o "WC" à Julia, preferiu aguentar até aos arbustos mais próximos.

'WC' de Manjarín

Segui para El Acebo. A paisagem continuava deslumbrante. O tempo estava formidável. Caminhava sem nenhum esforço. Quando cheguei ao topo, aos 1500 metros, a paisagem era de tirar o fôlego. Lá em baixo, bem longe, ao lado do rio Sil, via-se Ponferrada, o objectivo para a etapa daquele dia. Parei para contemplar a paisagem, sentando-me no chão, enquanto comia uma barra de cereais. Foi quando conheci dois espanhóis, o Fernando e um outro, que apesar de ser o que falava mais, nunca consegui fixar o seu nome. Caminhavam cada um com um saco de plástico, a apanhar todo o lixo que encontravam no chão. Quando chegavam a um pueblo, depositavam os sacos cheios no contentor do lixo mais próximo. Era uma atitude de louvar. Quem caminhava atrás deles, iria encontrar todo o Camino imaculado, limpo do desleixo dos peregrinos sem qualquer noção de bom senso.

A caminho do topo do monte Irago

Planalto no topo do monte Irago

O outro lado. Ponferrada à distância e Fernando com o saco de plástico do lixo na mão.

Montes de León

El Acebo surgiu lá em baixo. Novamente uma pérola do Camino, sem palavras para descrever. Tão bonito de longe como de perto, com as suas inúmeras casas típicas e ruas pitorescas. Encontrei novamente a Julia à porta de um bar. Parei para comer um bocadillo e beber uma coca-cola e conversei mais um pouco com Julia. Caminhava mais rápido que a Marie e a Angela, gostando da sensação de caminhar a só no Camino.

Descida para El Acebo

El acebo

Rua de El Acebo

Continuei a descida para Riego de Ambrós. Novamente um pueblo típico e espectacular. Entrei um pouco no albergue. Não me importava de ficar ali. O Fernando tinha-me dito para não ficar em Ponferrada, pois era um sítio muito "feio" para ficar. Recomendou-me a vila de Molinaseca, mesmo antes de Ponferrada. Depois de um dia daqueles, juntamente com a experiência do dia anterior, certamente não queria ficar numa cidade fria e feia. Iria decidir quando visse Molinaseca.

Riego de Ambrós

O caminho até Molinaseca é magnífico, começando logo na saída de Riego de Ambrós, por caminhos de pedra com imensa vegetação, descendo por vezes algumas escarpas. Àquela altitude já não fazia vento e o calor começou novamente a fazer-se sentir. O cheiro da vegetação era incrível, fazendo lembrar um dia de Agosto. Continuei até avistar Molinaseca lá em baixo. Lindo! Nem pensei duas vezes. Era ali que iria ficar.

A caminho de Molinaseca

Molinaseca à distância

Logo à entrada de Molinaseca tem que se atravessar o rio Meruelo. Uma ponte medieval dá entrada na vila. Algumas pessoas mergulhavam nas águas convidativas do rio, numa pequena praia fluvial. A vila era realmente típica e linda. É uma pena o albergue ficar do lado de fora da vila, um pouco afastado. O albergue municipal ainda ficava mais afastado, pelo que fiquei num albergue privado, recomendado pelo Fernando. Excelentes condições!

Molinaseca

Ao passear pela vila, parei para comer umas tapas numa esplanada. Parecia-me que andava a comer muito, mas não conseguia ter realmente a noção. Os requisitos do corpo no Camino, após uns dias a caminhar, são completamente diferentes dos do dia a dia de trabalho à frente de um PC. Mas, como andava a sentir-me bem, era para continuar. Não queria era tombar novamente por comer pouco demais.

Pedi apenas um copo de vinho, pois aquilo ainda não era o jantar, mas a dona do bar deu-me uma garrafa para a mesa para beber aquilo que quisesse. Momentos depois chegou o austríaco de um só braço. Perguntei-lhe pelos seus dois companheiros de Camino e iniciámos uma conversa à distância de mesas um pouco breve. Quando lhe disse que me lembrava dele de Sahagún por me ter dado o pacote de açúcar no albergue, vi uma transformação que não estava à espera. A cara dele pareceu iluminar-se. Talvez por ver que eu me lembrava dele por algum outro motivo que não a deficiência física evidente. Não sei. Sentou-se na minha mesa e conversámos por longas horas. Partira da Áustria há 90 dias atrás. Já tinha feito o caminho de Roncesvalles a Santiago no ano passado, e este ano decidira partir literalmente da porta da sua casa. Falou-me da beleza dos Massives Centrales em França, em como eram parecidos com o percurso daquele dia. Um pouco depois chegou o Suíço de barba. Também partira da porta de sua casa rumo a Santiago. Conheceram-se os dois no caminho há três meses atrás. Em León tinham decidido separarem-se porque já caminhavam juntos há demasiado tempo, mas estavam sempre a encontrar-se. Naquele dia iam continuar até Ponferrada.

Praia fluvial de Molinaseca

Depois de mais uma volta pela vila, lembrei-me de perguntar no albergue pelo jantar, pois tinha visto que tinham um restaurante no albergue. Era necessária reserva, e estas tinham fechado há uns minutos atrás. Albergues privados... Uma austríaca estava na mesma posição do que eu. Fomos os dois jantar à vila, e foi o melhor que fizemos, pois pagámos apenas mais cinquenta cêntimos por uma refeição completa magnífica, num restaurante. A mulher vinha do Tirol, na Áustria, região que durante o ano passa por seis meses de verão e seis meses de Inverno.

Depois do jantar ainda tive um pouco no albergue. Parece que nos privados não existe tanto convívio como nos municipais. Ainda estive a falar com um espanhol de Múrcia que se sentou no meu banco no pátio a fumar um "porro", como se diz em Espanha. Era normal entre os Espanhóis. De facto, por algumas das vezes que enrolava um cigarro, muitos me perguntavam "¿Qué estás haciendo? Un porro?". Nessa noite reparara em várias pessoas a coxear. A descida acentuada tinha feito as suas vítimas, tal como a descida dos Pirinéus me fez a mim. Também cheguei a temer a descida, mas já sabia como ser mais cauteloso. O espanhol de Múrcia tinha o seu joelho todo ligado e mal conseguia andar. Perguntei-lhe de onde tinha começado o Camino, o qual me respondeu "León". Estava explicado. Muitos dos que ali estavam só começaram em León, não estando ainda imunes devido ao Camino antes de León. Voltaria apenas a encontrar esse espanhol na estação de comboios de Santiago de Compostela, já depois de ter ido a Finisterra. Devido aos problemas no joelho, chegara a Compostela três dias depois de mim.

Também conheci um Australiano chamado Jeff. Apenas falei com Jeff durante uns minutos. É incrível como nos lembramos de alguns nomes, e outros, de peregrinos que falamos várias vezes ao dia, por vários dias, nem os conseguimos reter. Admirei bastante o Jeff, talvez devido à sua determinação e força perante as imensas dificuldades com que fazia o Camino. Não tive coragem de perguntar qual a desordem ou doença de que sofria. Nem sequer foi motivo de conversa. Mas era evidente, devido ao seu corpo estar constantemente a abanar.

No dia seguinte teria que recuperar a distância até Ponferrada e ainda chegar a Villafranca del Bierzo, o que colocava a etapa em 30km. Não era muito para a resistência que já tinha ganho, mas a maioria não queria arriscar ir tão longe e iriam ficar em Cacabelos, uns 8km atrás.

quarta-feira, 14 de novembro de 2007

Dia 21: Astorga - Rabanal del Camino

Num quarto só com quatro peregrinos, não dei pelo burburinho da manhã, pelo que acordei tarde, às 6:40. Saí do albergue já perto das 8:00. Entrei na Eremita Ecce-Homo. Estes locais são sempre uma ratoeira para donativos. Têm uma mesa onde se encontra uma pessoa que carimba as credenciais com o carimbo daquele local. Deixei algumas moedas, como deixava sempre. Felizmente não estava muito apertado com o dinheiro, como via em muitos dos peregrinos mais jovens.

Ermita del Ecce-Homo

Ao caminhar pela manhã, um pensamento começou a tomar forma, e desse pensamento uma inquietação e logo depois a busca por uma resposta. É difícil de explicar como surgem essas coisas no Camino. Comecei a pensar que não poderia caminhar mais em medo. O medo de voltar a suceder o mesmo que em San Juan de Ortega e Sahagún. Descobri que no fundo, caminhava com esse medo, escondido, mas sempre presente. Pensei que era algo que não poderia controlar na altura, se me voltasse a suceder de novo, mas era algo que poderia controlar antes, para o evitar. Tão simples. Estava-me a suceder no Camino o mesmo da vida do dia a dia. Tinha que prevenir e não deixar escalar para aquilo que temia, sem nada fazer. Só tinha que aprender como. Mas no Camino, já o tinha aprendido. O sol nasceu. O renascer de um novo dia. O renascer de uma nova vida. Agora compreendia. O Camino tentava ensinar-me isso há dias. Ouvia o ruído, mas não ouvia o som, claro e distinto. Era agora tudo tão claro. Tinha feito tudo para estar naquele local, naquela situação. Não tinha nada a conter-me. Nada a prender-me. Ninguém. Nenhuma coisa que me obrigasse a viver aquele dia como o anterior. Podia viver uma nova vida em cada dia. Seria um novo dia, isolado dos anteriores. Sem preocupações. Algo tão difícil no dia a dia. E também tão difícil de o fazer quando o podemos. À medida que o sol nascia, sentia os seus raios a aquecerem-me a pele e o interior do corpo. Podia fazer imenso calor. Podia chover torrencialmente. Iria adaptar-me. Não me doía nenhuma parte do corpo. Sentia-me forte. Caminhava bem. Caminhei em frente sorrindo. Caminhava feliz.

Nascer do sol a caminho de Murias de Rechivaldo

Cheguei a Murias de Rechivaldo onde entrei no albergue. Bebi um café solo no pátio interior. O albergue pareceu-me ser impecável! Uma excelente escapatória para quem não gosta da agitação habitual das cidades, como Astorga. O hospitaleiro sempre muito simpático com todos os peregrinos que entrava.

Albergue de Murias de Rechivaldo

Sem nenhuma excepção, todos os pueblos desde Murias de Rechivaldo até Molinaseca, fazem desejar passar lá o dia, ficando no albergue. Sem excepção! Ainda não sabia, mas estava a iniciar a travessia dos Montes de León, onde se revela um dos percursos mais belos de todo o Camino Francês, com paisagens e pueblos de cortar a respiração. Inicia-se também aqui novamente o percurso fora da estrada. Finalmente!

Início da subida para os Montes de León

É tradição colocar uma pedra em cima de cada marco do Camino. Cada pedra, um problema que fica para trás, ou simplesmente a presença da passagem de um peregrino. Mas este ganha o prémio paciência!

Cheguei rapidamente a Santa Catalina de Somoza. Parei no segundo café com esplanada do pueblo, tal como recomendado pelo pai do dono do café, que se encontrava na entrada do pueblo a vender bastões, conchas e outros objectos relacionados com o Camino.

Santa Catalina de Somoza

O caminho para El ganso custou um pouco devido à falta de sombra das árvores. Toda a etapa do dia foi muito agradável. Novamente a paisagem mudava para grandes vales e montes verdes. A travessia do deserto de Castilla tinha terminado. Estava nos montes de León. Em El Ganso parei novamente num bar. Bebi uma coca-cola e descansei um pouco, apesar de não me sentir cansado. Queria apenas parar em cada pueblo e apreciá-lo um pouco.

El Ganso

A caminho do Rabanal, parei para comer debaixo de umas árvores. A poucos quilómetros de chegar, o Camino sobre um pouco, vendo-se o Rabanal del Camino lá no alto. A subida faz-se escalando um trilho de rochas e terra batida, por entre árvores cerradas. Finalmente, a entrada de Rabanal del Camino. Encantador!

Rabanal del Camino

No entanto, cometi um erro. Não olhei para o guia, para me informar de quais os albergues que existiam. Fiquei logo no primeiro, que é algo que nunca se deve fazer. Um albergue privado, ainda por cima. O dono convenceu-me a ficar dizendo que no municipal era só menos 1€ do que ali, e ali tinham melhores condições. Não foi pelo dinheiro. Foi mais pela comodidade. Depois, quando entrei nos restantes albergues, incluindo o municipal, verifiquei que eram espectaculares! Com enormes pátios e jardins. Não fiquei muito chateado, porque podíamos sempre estar nos restantes albergues, sem dormir lá, é claro.

Albergue municipal

Albergue Nuestra Señora del Pilar

Um deles tinha um bar ao longo do pátio, com mesas e cadeiras. Fui lá duas vezes durante a tarde. A primeira, para comer algo. Pedi "macarrones", um prato comum em toda a Espanha como primeiro prato de um almoço ou jantar, onde me deram uma travessa enorme que dava à vontade para umas três ou quatro pessoas! Por vezes as doses eram exageradas.

Macarrones

No mesmo albergue onde fiquei, vi pela primeira vez três jovens alemãs que viajavam em grupo. A Julia ("Rulia"), Marie e Angela ("Gaeli"). Não as conheci nesse dia. No entanto, iria conhecê-las individualmente e sem dar por isso, influenciar directamente o Camino delas. Conheci também a Ana, uma brasileira que viajava com a sua mãe. Estava admirado por ver tão poucos brasileiros no camino. Eram apenas os 7º e 8º brasileiros que conhecia no Camino. Tinha a noção de que haviam bastantes brasileiros no Camino, no entanto, eram dos menos numerosos.

Não sei o que se passou nessa noite, mas todos se deitaram ás 21:00. Eu já achava que deitar-me às 22:00 era cedo demais. Seria prática comum dos peregrinos que preferiam os albergues privados?! Ainda estive acordado até às 22:00, primeiro na rua, a conversar com um ou outro peregrino deambulando por lá, e depois já na cama, onde a Gaeli me perguntou se já podia apagar as luzes. Tinha que ser. No dia seguinte, tinha uma grande escalada pela manhã. Queria sair bem cedo.

terça-feira, 13 de novembro de 2007

Dia 20: Villadangos del Páramo - Astorga

Acordei tarde, às 6:30. Quando saí do albergue, às 7:30, o Italiano ainda dormia. Aquele tipo dormia muito! O percurso continuava pelo lado da estrada até Hospital de Órbigo. Eram aproximadamente 10km até lá, e tencionava fazê-los sem parar durante a manhã, sem o sol alto.

O dia começou cinzento, feio mesmo. O sol nasceu escondido. Em San Martín del Camino entrei no albergue. As mesas do pequeno-almoço estavam vazias ainda por levantar. Ninguém. Já todos tinham partido. O albergue pareceu-me simpático. À saída de San Martín, não sei porquê, o Caminho faz uma incursão por dentro de um terreno, numa curva em "U", quando se poderia ir em frente, sem sair da estrada. Não estava à espera do que iria encontrar nesse pequeno troço do Caminho. Parecia quase que o Caminho me iria ensinar aí algo.

Sempre que ouvia algum corvo desde San Juan de Ortega, desde que quase tombei após ter ouvido um deles a gritar, que ouvia os seus sons como irritantes, e... bem, como sinais de mau presságio. Bastante idiota, eu sei, mas desde aí olhava para os corvos como indesejados e dizia mentalmente "Vai-te embora. Aqui não vai acontecer nada". E sempre que pensava nisso, eles calavam-se. Não acreditava seriamente nisso, e já o fazia sem dar por isso. É como uma daquelas coisas de bater três vezes na madeira. Comecei a detestar aqueles pássaros. Ouvia ocasionalmente um ou outro, praticamente todos os dias. Então e quando se encontra mais de uma centena de corvos aglomerados em duas árvores? O barulho era ensurdecedor e assustador. Olhei com medo para a primeira árvore infestada de corvos, por onde teria de passar por baixo. Se o grito de um corvo era sinal de mau agoiro, então aquilo era sinal de morte instantânea, de certeza! Apercebi-me do ridículo. Parei um pouco e olhei novamente para os corvos. Faziam voos organizados de uma árvore para outra. Os seus gritos, às dezenas em simultâneo, já não me pareciam horríveis. Eram negros e até... belos. Sorri e continuei. Fiz as pazes com os corvos nessa pequena parte do Caminho.

Puente de Órbigo

Cheguei à enorme e magnífica Puente de Órbigo. No outro extremo da ponte existe um "rest bar". Entrei para o segundo pequeno-almoço e um café solo. Fiquei quase uma hora! Os seus sofás são quase pecaminosos para um peregrino. Tem uma vista panorâmica sobre a ponte e fiquei a descansar, afundado nos enormes sofás enquanto procurava por algum peregrino conhecido que passava lá fora. Era naquele local que o Caminho que se dividiu no dia anterior se iria reunir de novo. Ninguém. Segui caminho.

Rest Bar

Em Santibáñez de Valdeiglesias parei num café para um bocadillo. Os brasileiros surgiram pouco depois. Conversava sempre um pouco com eles. As três mulheres do grupo tinham o hábito de cantarem durante o Camino. Sempre muito bem dispostos. Acompanhámos os passos uns dos outros até um pouco antes da Arca do Pino, no penúltimo dia para Compostela.

O dia estava insuportavelmente quente. Caminhar ao sol era uma tarefa árdua. Transpirava por todos os lados, mas a experiência no Camino sob aquelas condições já se começava a fazer sentir. Já conseguia ouvir melhor os sinais do corpo, saber quando aproveitar as sombras para descansar e não deixar passar certos níveis de cansaço. Quando uma nuvem cobria por momentos o sol, era como se as energias fossem renovadas, caminhava mais rápido e o cansaço praticamente desaparecia.

Após muitas paragens debaixo de árvores, cheguei ao Crucero de S. Toribio. Astorga via-se à distância, lá em baixo, mas ainda faltava um pouco. Fiz a descida por San Justo de la Vega e mais tarde a subida para Astorga, quase que a escalar as ruas da entrada na cidade para chegar ao topo.

Crucero de S. Toribio

Escalada para Astorga

Fiquei no albergue "Siervas de Maria". As condições eram excelentes. Fiquei num quarto com apenas quatro camas. Por baixo de mim encontrava-se um alemão que já ali estava há dois dias, a recuperar de uma lesão no joelho. Fiquei maravilhado com as traseiras do albergue. Possui um terraço com mesas e cadeiras com uma vista fabulosa para este, por onde entrámos.

Terraço do albergue

Após comer qualquer coisa, subi para o beliche para arrumar a mochila. Foi quando ouvi uma voz no corredor, mesmo do lado de fora da minha porta fechada. Era uma voz de uma mulher Portuguesa! Desci do beliche, abri a porta, e... nada. Já tinha desaparecido. Tinha apanhado a Portuguesa que estava três dias à minha frente em Estella. Nunca cheguei a conhecê-la. Dias mais tarde, o Miro disse-me que a conheceu, e que já estava um ou dois dias atrás de nós.

Fui conhecer a cidade. Astorga é realmente magnífica! Muitos peregrinos planeiam ficar ali por dois dias. Percorri toda a parte histórica da cidade, até à catedral. Não sei que tradição há com o chocolate em Astorga, mas existem imensas lojas com chocolate de todos os sabores, cores e tamanhos. Existe até um museu do chocolate!

Museu do chocolate, a entrada a abarrotar.

Encontrei o Italiano no supermercado. Ficámos na conversa até à hora de jantar numa das praças de Astorga. Aqui e ali, sempre algum peregrino que já começava a reconhecer. A Francesca continuava a acompanhar os meus passos juntamente com outra italiana que também só falava italiano. Não encorajava muito a comunicação.

Catedral de Astorga

À noite, no terraço do albergue, olhava para todos os que ali se encontravam, e pensava com um pouco de tristeza em como nunca tinha visto nenhum deles antes, em como tinha perdido novamente todos. Recordando-me das caras que ali se encontravam, recordo-me deles hoje com um sorriso, pois mais tarde, ao longo do caminho, conheci cada um deles. A Ana e a mãe, os romenos, os dois espanhóis hippies, os austríacos, os alemães. Todos.

Astorga à noite

segunda-feira, 12 de novembro de 2007

Dia 19: León - Villadangos del Páramo

Acordei às 6:30, pela primeira vez cansado por não ter dormido bem. A etapa seria curta. Não sei porquê, continuava a dizer ao Diego que o sítio para onde ia nesse dia tinha um nome grande que nunca me recordava. Isto porque lia no guia o nome "Villadangos del Páramo o Villar de Mazarife". Via o nome e nunca chegava ao "o", o equivalente ao "ou" Português, nem tão pouco estranhava o facto de haver um pueblo com um nome enorme com aquele. Também não reparei no mapa que o Camino se dividia em dois, um para cada destino, apenas se juntando novamente no dia seguinte. Foi um dos dias que me senti mais cansado, e apenas queria chegar cedo ao final da etapa para poder descansar a tarde inteira. Estava a precisar.

Fui pelo caminho, que se tivesse reparado, seria automaticamente excluído. Todo o caminho se efectuava ao lado da estrada nacional, ao contrário do que iria para Villar de Mazarife. Quando me apercebi disso, fiquei um pouco chateado comigo mesmo, pela enorme distracção.

No dia anterior esqueci-me de apresentar o Diego. Aqui está ele, com o Espanhol por trás, dias mais tarde no albergue de Ribadiso.

A saída de León foi longa, com o caminho pela cidade muito mal sinalizado. De início segui as vieiras em bronze, cravadas no chão, até à catedral. Aí, as marcas acabaram. Perguntei pela direcção do Camino a várias pessoas que já se dirigiam para o seu local de trabalho, mas ninguém parecia saber. Já seria de esperar nas grandes cidades. Encontrei uma freira. Ela sabia! Guiou-me a mim e a mais dois peregrinos perdidos na direcção certa. Saindo da parte histórica da cidade, ainda atravessámos uma imensa parte de León. O sol nasceu quando me encontrava ainda dentro da cidade.

Saída de León. Os parentes ricos dos Hobbits!

Existem peregrinos que não sei como sobreviveram tanto tempo no Camino. Só falam a própria língua, mas o mais grave de tudo é que nunca respondem ao chamamento de "Peregrino!". E dentro desses, aqueles poucos que olham, ignoram completamente aqueles que o chamam, continuando pelo caminho... errado. Passado uma ou duas horas, passam novamente por nós com os seus passos apressados, com os seus dois bastões 'clicando' rapidamente no chão, e novamente com as palas nos olhos, alheios a tudo no Camino, olhando apenas para o objectivo do dia. Era frequente, e chateava-me um pouco quando tentava comunicar com algum deles.

Parei em Virgen del Camino para um café solo numa esplanada. O sol brilhava e aquecia a manhã. Encontrei pela primeira vez o peregrino alemão com a Bierke, a cadela peregrina, com a sua própria mochila. Linda! Caminhavam desde a Alemanha, da porta de casa, já há dois meses. De modo a proporcionar sempre um lugar para a Bierke dormir, o Alemão viajava com uma canadiana às costas, que montava não só quando proibiam a Bierke de ficar no albergue, como também quando pediam uma quantia mais elevada para poderem ficar no albergue. No final de cada etapa, quando o dono retirava a mochila das costas de Bierke, era ver a felicidade e maluquice canina à solta, a saltar de um lado para o outro e a esfregar as costas em tudo o que fosse chão fofo.

Bierke e o seu dono

Virgen del Camino

Quando saí de Virgen del Camino, não reparei na bifurcação do Camino e segui pela direita. Passei rapidamente por dois pueblos. O caminho para Villadangos foi longo e escaldante. Sempre com o barulho constante dos carros ao lado. Quilómetros antes do pueblo, uma infindável fila de hotéis, restaurantes, clubes nocturnos e bombas de gasolina. Finalmente Villadangos. O albergue situa-se logo na entrada, junto à estrada. Já estava farto da estrada. No entanto, possui umas instalações formidáveis. Na entrada encontrava-se um papel deixado pela hospitaleira, em que indicava que nos podíamos instalar que apenas iria regressar às 17:30. O albergue, embora quase vazio na altura, encheu praticamente na totalidade mais tarde.

Albergue de Villadangos del Páramo. O Espanhol, Diego, Ana, Flor, e um peregrino espanhol de t-shirt verde que conheci em Zubiri e nunca mais o vi a partir deste dia.

Sentia que ainda não estava recuperado na totalidade. Fui almoçar a uma "bodega", à Bodega del Valle. Era uma adega típica transformada em restaurante, que pelo que o Espanhol me contou, têm uma boa fama por aqueles lados de terem boa comida. Foi a melhor refeição que tive até à data no Camino! Pão caseiro cozido em forno de lenha, um peixe frito em alho com um sabor incrível, vinho bom da casa, mousse de limão caseira e uma cafeteira de metal na mesa com café à descrição. Foi uma refeição magnífica, e dei a conhecer isso às duas "chicas" que operavam o restaurante sozinhas.

Villadangos del Páramo

A tarde passou rápido. As tardes de ócio nos albergues, na conversa, servem sempre para recuperarmos forças. O Diego encontrou mais três sul-coreanos, um peregrino e duas peregrinas. Na altura pensava que era uma coincidência incrível, encontrarem-se todos, logo ali, mas mais tarde vim a conhecer muitos mais sul-coreanos e a saber o porquê de haver tantos no Camino.

Jantei com um Alemão no albergue que caminhava já há 40 dias, desde Lurdes. Já tinha ganho uma resistência enorme, e caminhava sempre no mínimo 40km por dia. Conheci ainda um Italiano muito bem disposto, de que não me recordo do nome, que me iria acompanhar até Finisterra. Até que poderia acompanhar-me ao caminhar, não fosse o facto de ele ter o hábito de acordar sempre, no mínimo, apenas às 7:30 todos os dias.

Acordei novamente de noite com dores no calcanhar esquerdo. Lembrei-me das palavras do alemão ao jantar, na sequência de uma conversa sobre beber água "To go to the bathroom at night. One time is good. More is bad. Less is bad". Era verdade. Todos se "queixavam" que no Camino tinham que ir sempre à casa de banho de noite. Fui à casa de banho, coisa que custava sempre mais quando se estava na parte de cima do beliche. Voltei a adormecer, acordando só na manhã seguinte.

domingo, 11 de novembro de 2007

Dia 18: El Burgo Ranero - León

Saí de El Burgo Ranero antes das 7:00. Sabia que à minha frente se encontravam 12km sem nenhum pueblo, até Reliegos. Lembrava-me constantemente da fiesta de Reliegos, da conversa com o Francês, e como a tinha perdido. A caminhada foi longa e sem pausas. Caminhando só e sem nada para ver, parar um pouco que seja, atrasava enormemente a viagem, por isso evitava-o. O objectivo do dia era chegar a Mansilla de las Mulas e no dia seguinte chegar a León.

Nascer do sol a caminho de Reliegos

Em Reliegos parei para um excelente bocadillo de queijo e pasta de tomate com alho. Na esplanada, quando bebia o café solo, reparei melhor em duas caras familiares que me acompanhavam desde Sahagún. O Diego, um sul-coreano adolescente, e um Espanhol que me esquecia constantemente do nome, de meia-idade, que falava que se desunhava, mas ao contrário do Luís, falava de tudo e mais alguma coisa, menos dele. Diego não era o seu verdadeiro nome, era o seu "nome espanhol" como me explicou. Percebi logo porque usava o seu nome espanhol quando me disse o seu nome em Coreano, impossível de memorizar à primeira, ou até mesmo à segunda. Todos os sul-coreanos tinham um nome em Espanhol. Um rapariga que conheci mais tarde, cujo nome em Coreano era o de uma flor, tinha então o seu nome Espanhol de "flor".

A caminho de Reliegos

O Diego foi o único que conseguiu dizer o meu nome à primeira. "Ah! Rui, como Rui Costa?". Sim, uma grande surpresa. Nem os Espanhóis conseguiam pronunciar o meu nome à primeira. Mais tarde, em conversa com outro sul-coreano, que teimava em pronunciar o meu nome com "Lui" e não "Rui", ao fim de algumas abordagens, lembrei-me do Diego, e perguntei se conhecia o jogador de futebol "Rui Costa". "Yes, I know him. But I call him 'Lui'!". Ahhh... nem todos os sul-coreanos no Camino falavam tão bem espanhol como o Diego. De facto, foi o único que conheci que falava Espanhol e não Inglês.

Entrada em Reliegos

Quando ainda me encontrava na esplanada, apareceu um espanhol num carro que começou a distribuir folhetos publicitários de um albergue novo em Puente Villarente. O meu guia não me indicava nenhum albergue nesse pueblo, pelo que o guardei. Inconscientemente já começava a alargar a etapa do dia.

Parti de Reliegos para Mansilla de las Mulas. Era o último troço da etapa planeada. O céu estava completamente limpo e o sol começava a brilhar com toda a sua força. À distância vi uma mancha castanha no caminho. Era inconfundível. A australiana chamava-o de "Mister Santiago". Era um peregrino com uma barba cinzenta enorme que viajava vestido como um peregrino de outrora, com uma enorme capa castanha, grossa e pesada, que chegava até às suas sandálias de couro, viajando assim ao sol e à chuva. A capa continha símbolos do Camino, com vieiras e cruzes de Santiago. O peregrino tinha uma particularidade, de não ter praticamente voz nenhuma. O barulho mais alto que emitia assemelhava-se ao som de um tapete de plástico eriçado a roçar com velocidade num piso de cimento, mas muito mais alto. Quando o ouvi pela primeira vez em Sahagún, achei-o horrível. Em Burgo Ranero já não me fazia impressão. Passei por ele, e como todos os peregrinos que passavam sempre por outro peregrino era obrigatório uma saudação. Ou "hola", ou "buenos dias" ou na maior parte das vezes "buen camino". Aqueles mais antipaticos, que eram poucos, mas existiam, nunca cumprimentavam ninguém. Ao passar pelo peregrino, conseguiu-me dizer numa voz muito baixa e rouca "buen camino". Buen Camino peregrino.

Mansilla de las Mulas. Monumento irreal ao peregrino.

Cheguei rapidamente a Mansilla de las Mulas. Rápido demais. Sentia que era cedo para parar de caminhar. Entrei no albergue. Vislumbrei um pequeno pátio com mesas e cadeiras no fundo de um corredor, bastante acolhedor. Mansilla de las Mulas pareceu-me um excelente sítio para ficar. Fiquei até encantado com o pueblo. Não sei então porque saí do albergue. Entrei num café, fora do Camino, com uma esplanada num relvado. Bebi uma coca-cola e estudei cuidadosamente o mapa e as distâncias. Encontrei o folheto do novo albergue em Puente Villarente. Eram só mais 6km, porque não? Segui caminho.

Um cão estava determinado em viajar comigo e seguiu-me durante vários quilómetros, mesmo tendo água e comida numa das ruas em Mansilla. Quando o sol começou a aquecer mais, voltou para trás. Fora do pueblo parei para comer algo. Encontrei a Francesa a almoçar. Comemos juntos e falámos um pouco. Ela também tinha o mesmo folheto do albergue em Puente Villarente e dirigia-se para lá. Acabei de comer rapidamente e segui caminho. Assim que saí da sombra das árvores, um vento quente e abafado caiu sobre mim. O sol! Estava mais calor do que nunca. Na estrada, ao lado, conseguia ver ondas de calor a emanar do alcatrão. Parei imensas vezes, sempre bebendo imensa água, tendo cuidado para não ficar sem ela. A pele dos meus braços começara novamente a estalar com bolhas de água.

Puente Villarente. Ficar ou seguir para León?

Cheguei a Villarente. Consegui encontrar mais do que um albergue, mas todos eles eram privados. Não simpatizava muito com albergues privados. Fui avançando, passando por pelo menos dois albergues. Cheguei a um café com esplanada e encontrei o Diego e o Espanhol a beber uma caña. Aqueles tipos eram piores que os irlandeses. Até de manhã bebiam cerveja! Sentei-me com eles. Iam para León. Foi como uma pancada, nem medi os quilómetros, e decidi que também iria para León. O espanhol disse-me que seriam aproximadamente 11km. Mentalmente fiz as contas para três horas. Tudo se resumia a três horas. O sonho de chegar a Finisterra estava novamente a tornar-se em realidade por apenas três horas. Parece simples, mas caminhar mais três horas depois de caminhar 30km, não é para aceitar de ânimo leve. Não queria acreditar que iria fazer novamente 40km num dia. Iria conseguir? Já estaria novamente apto? Medi todas as consequências e aceitei-as. Estava bastante prevenido e mais experiente. Comi qualquer coisa no café e bebi uma caña. Coisa inteligente. Andava a sais na água e bebia álcool antes do sprint final. A caminho. O sol! Raios. Já passavam das 15:00 e o calor parecia não diminuir.

Sinceramente não sei como cheguei a León. No dia seguinte, olhando para o mapa, se tivesse que tomar a mesma decisão, teria optado por ficar em Puente Villarente. A companhia de Diego e do Espanhol ajudaram muito. É muito mais fácil caminhar longas distâncias acompanhado. Faz toda a diferença. Fizemos o caminho passo a passo sob um sol tórrido. Primeiro Arcahueja, depois Valdelafuente. O percurso era horrível, como quase todos perto das grandes cidades. Finalmente, ao chegar ao Alto del Portillo, visualizamos León ao longe. Mas ainda faltava muito. Nas grandes cidades, desde a sua entrada até ao albergue, tudo é possível.

Alto del Portillo. León em todo o horizonte.

Cheguei a Puente del Castro, que era praticamente parte integrante de León. Sentia-me um pouco fraco e já chegava a temer pelo pior. Deixei o Diego seguir em frente e parei num café. Após um "bocadillo de lomo caliente", que estava excelente, senti-me mais revigorado e segui em frente. Entrei em León, e como temia, teria ainda que andar muito até à parte histórica da cidade.

Existem vários albergues na cidade, incluindo um municipal, mas a minha escolha recaía num em especial. O albergue das "Monjas", um albergue dirigido por freiras Benedictinas com enormes tradições. E o melhor, é que se situava mesmo no coração da parte velha da cidade, mesmo perto da Catedral. Era tarde, e temia que já estivesse lotado, mas o meu guia indicava uma capacidade de 150 camas. Após a longa busca de sinais do Camino dentro de uma grande cidade, cheguei ao albergue. Fui recebido no pátio por uma freira. "Necessitas de sitio para dormir?". Sim! Outra freira fez o meu registo e indicou-me as "regras da casa".

León

No fim de me instalar, tomar banho e já de roupa lavada, verifiquei que eram 18:40. Estava exausto e tinha muito pouco tempo para conhecer um pouco de León. A cidade é enorme! Não saí da parte histórica. Percorri todas as ruas até à catedral, onde entrei. A experiência odorífera de caminhar pelas ruas de León pode ser comparada ao estar parado à entrada de uma loja de perfumes como a Sephora! Até mesmo as espanholas que faziam o Camino, não dispensavam o seu perfume, e também a sua maquilhagem. Lembro-me que dias mais tarde, a sair de Molinaseca, numa subida em que já requeria longas inspirações de oxigénio, aproximei-me de três peregrinas espanholas quando o vento mudou e inalei sem esperar o perfume delas três... ia desmaiando!

Catedral de León

Fui jantar a um restaurante recomendado pelas freiras. Após alguns minutos, o restaurante estava lotado e dividi a mesa com um casal de peregrinos alemães. Foi um jantar muito agradável. Como era comum com todos os alemães, o Inglês foi a língua achada em comum. Era o último dia deles de Camino. Iriam regressar para a Alemanha no dia seguinte, mas regressariam no próximo ano para terminar o Camino.

Ruas de León

Depois do jantar, como sempre, ficava a abarrotar com os dois pratos que sempre serviam no "menu del peregrino", fui dar uma volta por aquela zona da cidade. As freiras disseram-me o nome daquela parte da cidade, mas esqueci-me. Pode-se considerar o "Bairro Alto" de León. Imensa gente! Bares em todas as portas e janelas. Estava uma noite de verão perfeita. Os bares abriam as janelas que serviam como mesas, com bancos nas ruas.

Tinha caminhado novamente 40km num só dia, e perdido quase todas as caras conhecidas. Apenas o Espanhol, o Diego e a Francesca com os Italianos. No albergue senti os olhares dos peregrinos em mim, como que um intruso. Ou como alguém que iria começar o Camino dali. Era normal muitos começarem o Camino de León, pois a partir dali era considerada a "melhor parte do camino". Como se isso existisse. Mas sim, em termos de paisagem, era a melhor parte, mas na altura ainda nem sabia o que me esperava.

Estava novamente no Camino para Finisterra. Já não iria necessitar de andar enormes distâncias num só dia. As caras que via em León, seriam aquelas que iria ver até Santiago de Compostela. Na altura não sabia, mas o albergue municipal de León não tem hora de fechar, e muito foram para aí. No entanto, o albergue das "Monjas" tinha regras estritas, e quem estivesse fora do enorme portão de madeira depois das 22:00, já não entrava. Faltavam poucos minutos para as 21:30, e queria conviver um pouco com outros peregrinos, então, abandonei a noite de León e dirigi-me para o albergue.

León à noite

Quando cheguei ao albergue, uma freira deu sinal a todos os que se encontravam no pátio para a seguirem. Tinha-me esquecido! A "benedicion" de que uma freira me tinha avisado horas antes. Seguimos todos e entrámos na igreja ao lado. Deram-nos um guia de acordo com a língua de cada um. Uma mulher perguntava se não havia em Português. Tinha apanhado o grupo de cinco brasileiros que caminhavam três dias à frente. Deram início à cerimónia. Há algo de estranho e belo num coro religioso só de mulheres. Ao todo eram umas 16 freiras. Algumas delas tinham uma voz divinal. Foi um momento único, em que mais uma vez, eu, um não-católico, estava numa cerimónia religiosa. Era normal no Camino. Voltámos para o albergue.

Nessa noite tive imensas dificuldades em dormir. O facto do albergue ficar no "Bairro Alto" tem as suas desvantagens. O barulho! Lembro-me de ter acordado às 2:00 para fechar a janela próxima da minha cama que dava para a rua. Só quando todos fecharam as janelas é que se fez mais silêncio e se conseguiu dormir. Nesse dia começou uma nova dor. Uma dor no calcanhar esquerdo, que surgia principalmente quando estava deitado ou parado, e que por vezes me acordava de noite. Essa dor iria persistir e apenas iria passar no segundo dia após ter regressado a Lisboa. Era mais uma dor. Mas uma que não me deixava descansar de noite.