quarta-feira, 24 de outubro de 2007

Dia 11: Belorado - San Juan de Ortega

Acordei um pouco antes das 6:00. Acordo sempre de noite por volta da uma ou duas da manhã. Estava habituado a dormir entre quatro a seis horas por dia. Nessa noite acordei à 1:00 com uma sinfonia roncadora impressionante! Não acordo facilmente e não me incomoda o roncar dos outros, mas aquilo era demais! O que estava no beliche debaixo da cama do roncador-mor, de um grupo de quatro ou cinco outros roncadores, teve que começar a bater na cama para o acordar. Aí as coisas acalmaram mais.

As noites nos albergues eram sempre uma incógnita no que diz respeito ao roncar. Por vezes ficávamos em quartos com 4 camas apenas. Mas o número podia subir para muito mais. Em quartos com 10, 20, 40 camas, ou um enorme dormitório único como o de Roncesvalles e Nájera, por exemplo. Em Olveiroa, uma peregrina escolheu ir dormir para o chão do quarto onde estava, apenas com seis camas, de modo a fugir de um quarto com trinta camas em que tinha localizado possíveis roncadores de peso.

Haviam roncos de todos os tipos possíveis e imaginários. Os mais caricatos eram aqueles que quando paravam, davam a ideia que o responsável por eles tinha morrido! Só podia!

A caminho de Tosantos

Tomámos o pequeno-almoço dado pelo albergue. O dia nasceu com nevoeiro. Nem demos pelo nascer do sol. Eu e a Viviane já tínhamos um processo de caminhar para que pudéssemos estar sós e também acompanhados. Caminhávamos afastados com longas pausas em silêncio, e quando queríamos falar, aproximávamos mais um do outro.

Parámos em Tosantos para o café solo. No balcão do café do albergue estava um brasileiro meio atrapalhado com o serviço. Era o segundo dia dele como hospitaleiro voluntário. Tinha acabado o caminho Aragonês em 48 dias. Iria ficar mais seis meses na Europa.

Espinosa del Camino

Em Villafranca Montes de Oca começou a grande subida da etapa, precisamente quando o sol surgiu por trás das nuvens para brilhar e aquecer. A subida não foi fácil.

Subida para o Pico Valbuena

Os quilómetros finais da descida até San Juan de Ortega foram longos, através de estradas florestais, sem um único ponto de água. Parámos numa mata para almoçar e esgotei toda a minha água que já andava a racionar nos últimos 5km. Já tinha reparado que quando o sol estava encoberto era bastante raro beber água, tendo mesmo que me obrigar a isso, mas quando brilhava bebia relativamente bastante água.

Peregrinos a caminho de San Juan de Ortega

Chegámos a San Juan de Ortega. O pueblo é pequeno, para ser generoso. Basicamente é composto pela igreja, albergue, café e uma ou outra casa. Não tem muito para ver, nem sequer tem 'tienda'. A maioria dos peregrinos, principalmente os mais novos, seguiram mais uns 6km para ficar num outro albergue. O albergue de San Juan de Ortega é o mais pobre em que já fiquei. Situa-se num edifício colado à igreja. As paredes no interior são velhas, com a tinta a cair. As camas e colchões são velhos e já viram melhores dias. Mas foi uma experiência única e não me arrependo nem por um segundo de ter ficado ali. Pela primeira vez no Camino apanhei água fria no duche. Nem sequer havia a possibilidade de haver água quente. O John deu um grito ao entrar no banho. Eu dei dois! O Luís não deu nenhum, em vez disso, deu um grande discurso de como era tudo uma questão psicológica e de método, bla, bla, bla... raios, há alguém que o consiga aturar!

Fomos dar uma volta pelo pueblo que acabou em cinco minutos. Fomos então para uma das poucas coisas que se podia fazer ali: beber cañas. Tinham minis! Ah, as saudades de uma cerveja mais parecida com a nossa. Bebemos logo duas no banco do jardim em frente à esplanada.

Minis!

Foi no final da segunda que comecei a ter uma sensação de já não comer há bastante tempo. Momentos antes, um corvo deu um grito. A Viviane perguntou-me "isto não é sinal de mau presságio?" ao que respondi "não, isso era no passado". Comecei a sentir-me estranho. Comecei a ter a vista toldada por luminosidade. Era tudo tão brilhante. As cores transformavam-se em amarelo. Disse que não me estava a sentir bem e levantei-me. Estava com a Viviane e o Michele, um Francês. Nunca tinha tido nenhuma quebra de tensão, mas imaginava que seria aquilo. Nem eu nem a Viviane sabíamos o que fazer. Ela foi buscar sal ao café. Meteu-me três vezes sal na mão para o engolir. Na terceira vez já não conseguia abrir a boca. As palavras arrastavam-se. Não queria apagar. Agarrei-me com todas as forças à realidade. Não conseguia ver quase nada. Era tudo amarelo. Tão brilhante. Mal conseguia dar um passo. A Viviane disse-me que a cor da minha cara estava verde musgo e os lábios roxos.

Foi então que a Viviane reparou que o Yves estava na esplanada do café. Correu para o chamar. Yves caminhava connosco há vários dias. Falávamos ocasionalmente com ele. Mas o motivo por a Viviane o ter ido chamar era porque Yves tinha dito numa das conversas com a Viviane, antes de eu o conhecer, que era médico. Yves soube imediatamente o que fazer. Deu-me um copo de água com 6 pacotes de açúcar. Deu-me a provar e perguntou-me se estava muito doce ou apenas doce. Estava ligeiramente doce. Meteu mais dois pacotes de açúcar. Bebi lentamente e mandou-me deitar no banco com as pernas levantadas apoiadas nos braços do banco. Tive uma consulta médica num banco de jardim. Perguntou-me por vários antecedentes clínicos, pressionou-me a barriga e o pescoço por todos os lados. Durante 30 minutos verificou ocasionalmente a minha pulsação. Disse-me que estava a recuperar. Foi buscar duas pastilhas de sal à sua mochila e deu-mas. Quando me perguntou o que tinha comido e bebido nesse dia, e dei por mim a dar a resposta, não precisei de nenhum médico para me dizer o que se passava. Fui descuidado. Estava a ser muito descuidado no Camino. No dia seguinte, em Burgos, pesei-me e constatei que tinha perdido 5kg em 12 dias. Não andava a ingerir calorias. Açúcar era mesmo zero. Comia muito pouco para aquilo que andava, e nesse dia tinha bebido muito pouca água.

Quase que falhei no Camino, de chegar a Santiago. Não imaginam como fiquei com a perspectiva de não conseguir. Não iria ser tão descuidado. Era algo que não estava à espera, mas não me iria deixar vencer. Yves disse-me que no dia seguinte partia um autocarro em frente à igreja com destino a Burgos. Disse-lhe que não, que iria a caminhar, sublinhando bem o facto fazendo o gesto com dois dedos da mão. Yves sorriu apenas. Podia ir. Disse-me para comer muito bem nessa noite e beber muita água.

Nessa noite, às 7:00, a Viviane foi à missa. Horas antes tinha falado com o padre em que na conversa lhe perguntou "logo vais à missa, não vais?". Viviane queria falar com ele, pois o livro que lhe dera a conhecer o Camino tinha sido escrito por alguém que conversara com esse mesmo padre e relatara isso no livro. Sentia-me estranho. Como se estivesse num limbo. O céu estava com uma cor castanha, o vento soprava quente e o ar era abafado. Estava prestes a rebentar uma tempestade de verão. De início não quis ir, mas ainda cheguei no final da missa. A igreja de San Juan de Ortega é uma das mais invulgares que vi no Camino. Tem algo que a torna única. Não consigo explicar o quê.

Esperava pela tradição que o padre de San Juan de Ortega mantinha já há 30 anos. No final da missa, em frente ao albergue, chamaram por "dos hombres". Fui um deles. Entrei numa cozinha onde me deram alguns tabuleiros para transportar, contendo grandes canecas e colheres. Atrás de mim, o segundo voluntário levava um enorme caldeirão com sopa de alho. Entrámos numa sala com mesas de ponta a ponta onde o padre fazia questão de servir pessoalmente cada peregrino com a sua sopa de alho, ritual que mantinha há 30 anos, todos os dias. Era também o único jantar do padre nos últimos 30 anos. Tradicionalmente o alho tem propriedades medicinais incríveis e variadas. È um excelente anti-inflamatório, entre outras coisas. A Viviane contou-me que em algumas regiões do Brasil, quando se cortam, ainda colocam alho por cima da ferida. Era uma poderosa sopa para os antigos peregrinos. E sabem que mais? Para os novos também. Aquela sopa fez-me melhor do que qualquer outra refeição que pudesse tomar.

A Viviane tem melhores fotos do padre a servir a sopa de alho. Só tenho esta de longe. É também a única foto que tenho do Yves, no lado direito, em primeiro plano, de polo branco.


Sopa de alho

No final, fui ao pequeno restaurante do café comer um prato de carne, pois tinham sido "ordens do médico". Mas quase todos repetiram várias vezes a sopa e ficaram jantados. Era deliciosa.

Ao ir para o albergue, começou a chover e a trovejar. Nunca dormi tão bem como nessa noite. Pela primeira vez não acordei durante a noite, e ás 6:00 não me apetecia acordar. Ainda fiquei a preguiçar por 15 minutos. Acordei no dia seguinte com uma enorme ressaca.

3 comentários:

M. disse...

As suas aventuras sao tao interessantes! Voce devia escrever um livro. E por falar nisso, que livro era esse que a Viviane leu?!
Todos os dias eu espero a narrativa do dia seguinte...

Rui disse...

Obrigado Mar, mas acho que está tudo muito longe de um livro ;)

Depois de terminar o Camino, a Viviane foi passear pela Europa. Já deve ter regressado a casa. Vou-lhe perguntar pelo livro, pois não consegui memorizar nem o título nem a autora.

Antonio Miguel Matos disse...

Olá Rui... nao te conheço pessoalmente, apenas o teu nome do forum dvdmania e a da tua vontade de fazeres o Caminho. Fiz figas para que te corre-se tudo pelo melhor. You did it!
É com agrado que venho todos os dias a este cantinho da net ler mais um "episodio" da tua aventura.
Faz me de certa forma recordar dos Inter rails que fiz no passado por essa Europa fora.
Cumps!
Antonio Matos