Começámos a caminhar às 7:00, ainda de noite. Os 10km até Hontanas são um deserto desolador. Começámos a imaginar como seria fazê-lo no dia anterior, sob o sol abrasador, sem qualquer sombra à vista. Até que não foi má ideia ter ficado em Hornillos del Camino. A meio do percurso para Hontanas, encontra-se o albergue de San Bol, completamente isolado. Penso que no dia anterior, muitos não lhe devem ter resistido. Juntámo-nos a Isabel, uma espanhola que conhecemos no dia anterior. A Isabel, como a maioria dos Espanhóis no Camino, fazia-o por etapas. Em cada ano, tirava uma semana de férias para o Camino. Este ano tinha começado de Burgos, onde tinha terminado no ano anterior. A Isabel acabou por acompanhar a Viviane até ao final da sua semana no Camino.
Nascer do sol a caminho de Hontanas Os últimos quilómetros até Hontanas estavam queimados devido a um incêndio recente. O solo, preto e desolador, cheirava a queimado. Parámos em Hontanas para um café solo.
Chegada a Hontanas Hontanas De Hontanas a Castrojeriz a paisagem é bastante mais simpática. O percurso fez-se rapidamente. Ao nosso grupo juntou-se um Francês que falava Espanhol fluente. Nunca me recordava do seu nome, e hoje, está mesmo perdido na memória. Viria a falar ainda bastante com ele. Irei mencioná-lo mais tarde apenas como "o Francês".
Isabel e o Francês a caminho de Castrojeriz A partir de um certo tempo no Camino, reparei que tanto eu como todos os outros peregrinos deixavam de se preocupar com os nomes. Travávamos conhecimento com alguém, e uma das primeiras coisas que perguntávamos era o país. "De onde ès?". "Were are you from?". O nome era irrelevante. Para quê? Provavelmente iria ser esquecido. Havia coisas mais interessantes para saber e para contar. Não era de forma alguma um gesto de desinteresse. Cheguei a passar dias com peregrinos de quem nunca soube o nome e os quais nunca souberam o meu. A minha identificação era fácil. Era "o Português". Era o único.
Ruínas do Convento de San Antón Nos últimos quilómetros de Castrojeriz, a Viviane meteu o piloto automático. Era normal. Ignorando as dores e eliminando as pausas, caminhando mais rápido, já com a perspectiva do albergue à vista. Eu não podia pensar assim. No máximo estaria a metade do caminho para aquele dia. Andava mais rápido a acompanhar a Viviane, mas com algum cuidado. A Viviane tinha tomado de manhã um relaxante muscular e um analgésico e conseguia caminhar melhor do que no dia anterior.
Chegámos a Castrojeriz. Era o local da despedida. Tinha que descansar um pouco os pés e comer algo. Eles tinham chegado ao final da etapa do dia. Eu ainda tinha 25km pela frente. Parei num bar com jardim e esplanada. A Viviane tinha que prosseguir para o albergue de modo a conseguir lugar. Despedimo-nos no bar. Tinha a certeza que nunca mais voltaria a ver a minha companheira de Camino. Estava novamente só.
Castrojeriz ao longe Passei por Castrojeriz lamentando não poder ficar. Via todas as caras conhecidas do Camino já sem mochila, regressando de uma "tienda" ou passeando pelo pueblo. Saí de Castrojeriz às 13:00. Um calor enorme. Tinha reparado no mapa que havia um desnível à saída de Castrojeriz, mas não tinha ligado muito. Foi a subida mais difícil que fiz em todo o Camino. Foi ridículo! A subida consiste em um pouco mais de 100 metros, mas em apenas 500 metros de comprimento.
Saída de Castrojeriz. O monte a subir surgiu como que uma parede. No sopé do "monte" encontrei a Steffi, uma alemã instalada à sobra de uma árvore. A última árvore dos próximos quilómetros. Deve ter ficado ali por mais de uma ou duas horas, pois não a voltei a ver nesse dia. Devia de ter feito o mesmo. Não consigo contabilizar as vezes que parei. O sol impedia-me de dar muitos passos. Caminhava lentamente, quase em câmara lenta. Havia uma brisa que por vezes se transformava num bafo quente enchendo os pulmões de ar quente insuportável. Olhava com preocupação para os meus braços. Começaram a ficar cheios de bolhas de água devido ao sol tórrido. A pele começava a estalar. Tentei não entrar em pânico, mas era desesperante. Era diferente de todos os outros dias, pois não havia o conforto psicológico de ter peregrinos por perto. Ninguém à minha frente. Atrás, conseguia ver a estrada até Castrojeriz, bem longe. Ninguém em todo o Camino. Estava totalmente só. Era o meu primeiro dia a caminhar "fora das etapas" e não estava à espera. Mais quatro lentos passos. Vento quente. Pausa. Mais um golo de água. Suava por todos os lados. Cheguei ao topo. Olhei para o relógio. Eram 14:00. Tinha demorado uma hora a subir. Foi um alívio ter conseguido.
A subir para o Alto de Mostelares. Uma nuvem tapa por minutos o sol. Castrojeriz ao longe. Ninguém no Camino. Na descida, enormes nuvens taparam temporariamente o sol e deitaram umas gotas de chuva, apenas para salpicar o Camino. Era assim o tempo no Camino. Novamente no deserto amarelo. Até onde a vista alcançava só via amarelo. A única coisa que se movia era as ondas de calor perto do chão, quando se olhava para o horizonte. Numa das setas do Camino, algum peregrino escreveu uma frase. Algo em espanhol como "Peregrino, mira el mar de flores de todas las colores". Não sei se ri ou se chorei. Imaginei por momentos como seria aquelas planícies na primavera, sob uma brisa fresca, com verde e flores de todas as cores. Mas agora, tudo o que via era um deserto amarelo, a brisa era quente, a minha roupa estava molhada com a transpiração, os meus braços estavam assustadores, e não via vivalma nem tinha ideia de quando iria encontrar a próxima povoação.
O outro lado. A descida. Ninguém no Camino. Olhei para trás. Um peregrino! Tinha iniciado a descida do monte. O alívio foi enorme. Porquê? Estava habituado a caminhar com a Viviane. Sempre que ficava um pouco para trás ouvia sempre um "estás bem?". Se caminhava um pouco mais afastado, haviam sempre inúmeros peregrinos pelo Camino. Ali estava só, sob condições difíceis. Psicológicamente é muito mais duro. E não estava a contar com isso. A imagem daquele peregrino, embora a quilómetros de distância era tão refrescante como ter encontrado ali uma cascata de água. Continuei mais confiante. Finalmente, ao longe, vi árvores. Era uma fonte! Estava a racionar água novamente, e praticamente já não tinha nenhuma. Ao aproximar-me deparei-me com um cenário quase de miragem no deserto. No meio do camino estava a "bicicleta" de Bernard, e este estava junto da fonte a falar com uma jovem peregrina semi-nua. Tinha tirado todas as roupas para se refrescar na fonte e estava coberta apenas por uma pequena toalha que de vez em quando descaía. Era irreal. O peregrino que tinha visto ao longe chegou. Era uma mulher Francesa que me acompanhava desde o primeiro dia. Fazia o Caminho com Michele, um Francês, mas este tinha terminado a sua etapa em Burgos. Faziam o Camino em quatro etapas, uma por ano, desde Paris até Santiago de Compostela. Duas etapas em França e duas em Espanha. Mais tarde iria falar melhor com a Francesa, que mais uma vez não me recordo do nome.
Caminhámos juntos até à Ermita de San Nicolás. Era um albergue. Ela iria ficar aí. Entrei para a ver e descansar um pouco. Na mesa, já a finalizar um almoço, encontravam-se os resistentes do grupo italiano, que não tinham terminado ou pulado o camino em Burgos. Sentei-me um pouco. Estava muito cansado. O hospitaleiro fez-me desejar ali ficar. Aos poucos ia-me oferecendo coisas. Almoço, vinho, café. Recusei tudo. Não podia ficar ali. Não podia parar ali. Ainda estava muito longe de Frómista e começava a ficar tarde. Na altura pensava que estava a ficar tarde. Tarde para quê?! Segui para Itero de la Vega.
Ermita de San Nicolás Embora tivesse recusado o almoço na Ermita, tinha que comer algo. Passei por um albergue onde o dono me perguntou se queria ficar. Perguntei apenas como era o camino até Boadilla. Ele apontou para um monte à distância, e percebi que era mais ou menos aquela distância, sem árvores. O que me estava a dizer, que só percebi mais tarde, é que tinha que passar por aquele preciso monte, e ainda tinha muito mais para caminhar do outro lado. Eram 9km. A partir deste dia, comecei a criar a noção de quanto tempo demoraria a percorrer um determinado número de quilómetros consoante o passo que levava. A marca de nove quilómetros de Itero de la Vega até Boadilla del Camino ficou para sempre registada na minha mente como um marco de dificuldade. Se faltavam nove quilómetros, consoante o meu cansaço, conseguia determinar se iria ou não conseguir.
Estava exausto. Decidi entrar num café para comer algo rapidamente e descansar um pouco. Perguntei ao balcão se tinha "bocadillos ou algo para comer". Pronto... tinha cometido o erro fatal em Espanha, que é o de falar com um espanhol com sotaque e talvez incorrecto e dizer a palavra mágica "comer". Eles não ouvem mais nada. Em Espanha, pequeno-almoço é "desayuno", jantar é "cena" e almoço é... "comida". Logo, perguntar se tem alguma coisa para comer, naquelas condições, é perguntar se tem alguma coisa para almoçar, e almoçar em Espanha, é refeição de dois pratos, vinho e "postres". Mas na altura não me apercebi disso. Imediatamente, o empregado do café apontou-me para um homem que estava no balcão, que me acenou para ir com ele. Foi esquisito, no mínimo. Segui-o para fora do café, atravessámos a rua e entrámos num albergue privado, para uma sala de jantar. Serviu-me um almoço de dois pratos, e isto sem eu dizer nada! De início tinha ideias de me ficar apenas pelo primeiro prato, mas... não me tinha apercebido de como estava com fome! Gosto de pensar que esta situação insólita foi mais uma das estranhas ajudas do Camino, devido ao que aconteceu de seguida.
Bem cheio, segui viagem, novamente sem qualquer peregrino à vista. Eram 16:00 e o sol parecia ainda tão forte como se fossem 14:00. Tinha 9km pela frente sem sombras. Apenas umas árvores no topo da colina à minha frente. Deviam ser uns 4km até lá. Ocasionalmente passavam por mim alguns peregrinos de bicicleta, dando-me algum ânimo, mas rapidamente desapareciam por trás do monte. O monte parecia-me tão longe. Desesperava novamente por caminhar só, naquele calor. Pareceu-me uma eternidade para o topo do monte. Tencionava descansar um pouco nas árvores que via à distância, mas ao aproximar-me, vi vultos. Eram peregrinos! Momentos antes olhei para o meu telemóvel. Tinha rede e bateria suficiente para uma chamada. O meu desespero era tal que chegou a esse ponto. Estava exausto e quase a tombar numa estrada em que não sabia se iria passar mais alguém até à madrugada seguinte. Quando vi três peregrinos a saírem das árvores senti um alívio enorme. Disseram-me que ali se descansava muito bem à sombra das árvores. Eram espanhóis, daqueles apenas com uma mochila pequena às costas, que optavam pelo transporte de carro de mochilas. Disse-lhes que não podia parar. Não os queria perder de vista. Segui à frente deles. Já não se podia chamar àquilo que estava a fazer de "andar". Deambulava. Doía-me o braço inteiro cada vez que tentava alcançar a garrafa de água na mochila. Optei por caminhar com ela na mão. Por momentos pensei que a minha mente já estava a ser afectada pelo sol. Pela primeira vez, fiz a mim próprio a pergunta que já tinha ouvido de outros peregrinos "o que é que estou aqui a fazer?". De seguida, surgiu a pergunta fatal. Surgiu naturalmente. Estava sem forças. Tentava parar para descansar e as recuperar, mas tinha atingido aquele ponto em que não conseguia recuperar do cansaço. Não adiantava parar. O ritmo da respiração não baixava. Não conseguia descansar ali. Não tinha forças. Onde iria buscar forças que não tinha? Era essa a pergunta. E pensei muito sobre isso nos dias seguintes. Na altura pensei em muitas coisas. Era ali. O momento em que o limite das forças físicas forçaram a mente a ir por caminhos estranhos e diferentes. A pensar apenas naquilo que interessa. Tudo o resto é supérfluo. Pensei... em muito que não vou aqui dizer. Tinha perguntado aos três peregrinos quanto faltava para chegar a Boadilla del Camino. As palavras saíram-me arrastadas. Disseram-me 4km. "Una hora e média". Não! Tanto! Ao fim de não sei quanto tempo, consegui ver um edifício de Boadilla ao longe. Uma torre de água? Não sabia. Já não conseguia focar bem a vista. O calor e o sol eram tão fortes. Quase 40km sempre ao sol. Como pude ser tão descuidado? Confiante na resistência já ganha no Camino, tinha ignorado por completo a força do sol. Uma longa recta. Outra a seguir. A torre de Boadilla estava cada vez mais perto. Finalmente as árvores. Tombava em cada passo. Boadilla! Tinha chegado! Caíram-me lágrimas dos olhos. Tinha conseguido.
Saída de Itero de la Vega Logo na entrada, à esquerda, vi a palavra "albergue" escrito num edifício. Fui até lá. Era um barracão sem qualquer espécie aparente de conforto do exterior. Não queria saber. As portas estavam fechadas. Dois velhos sentados num banco disseram-me que estava "cerrado". Havia outro junto à igreja. Conseguia ver a torre dela. Segui para lá. Vi o albergue municipal. Entrei. Se o albergue estivesse cheio, iria implorar por um lugar no chão. Não conseguia andar mais. Não podia mais. A sair do albergue estava David. "Well! I've been here since 13:00, and there's only three people in here. You're the third.". Hahahaha quase que o abracei. Eram 18:00. Só três pessoas! O albergue tinha apenas 12 camas. Era minúsculo. A hospitaleira estava sentada no banco, no lado de fora. Nem a cumprimentei ao passar. Estava agora alojado. Ao ver o meu estado, a hospitaleira disse-me para beber muita água. Devo ter bebido logo uns 2 litros de água. A minha testa estava cheia de sal. Ainda não estava salvo. Sabia bem o que me podia acontecer. Mas já estava preparado. Comi um bolo que tinha na mochila e de seguida, meio pacote de amendoins com sal. Sempre a beber imensa água. Tomei um duche e finalmente estabilizei. Estava tão cansado que nem tinha forças para escrever no diário. Deitei-me um pouco para recuperar alguma força. Comi sem fome algumas coisas que tinha na mochila. Não tinha forças para sair do albergue. O David foi jantar ao albergue privado de Boadilla, que estava lotado. Eram aí que estavam todos os que ali tinham ficado. Pelos vistos é um albergue referenciado do Camino. Mas não queria saber. Estava no albergue ideal para mim. Calmo e sossegado, para descansar. Ao cair a noite, começou a chover e a trovejar. Adormeci antes das 22:00. Finalmente.
Vista do albergue. Quase a começar a chover.