quarta-feira, 30 de janeiro de 2008

Dia 31: Monte do Gozo - Santiago de Compostela

Acordei às 6:00. Não tinha sono. Estava ansioso. Era cedo demais para entrar em Santiago, mas não conseguia dormir mais. Tomei o pequeno-almoço à porta do edifício onde dormi, falando com quem aparecia. Surgiu o Walter, o brasileiro que partilhara o meu primeiro quarto no dia anterior. De modo a levar a sua bicicleta no avião de volta para o Brasil, empacotara-a numa enorme caixa. Apareceu à porta do edifício a arfar, tentando carregar a enorme caixa e a mochila de duas bolsas, comum a todos os peregrinos de bicicleta, com os seus 20kg. A paragem de autocarros para o aeroporto situa-se na outra ponta de San Marcos. Inicialmente ofereci-me para lhe levar a mochila apenas até ao topo da rampa do albergue. Mas era mesmo pesada! Acompanhei-o até à paragem de autocarros. O Walter, com medo que não fosse até ao fim, ainda fez a chantagem psicológica "Que bom! Ainda continua com o espírito do Caminho. A Ajudar os outros.". Não era necessário. Não o ia deixar enrascado. Suei logo pela manhã. Foi a única vez nesse dia, para variar.

Passei uma última vez pelo monumento ao peregrino

Quando regressei ao Monte do Gozo, o céu já estava violeta. Estava a amanhecer. Hora de partir. Finalmente Santiago. Alguns peregrinos estavam no bar da Ciudad de Vacaciones. O Andrew dirigiu-se para lá para comer algo. Mas não era isso que eu queria. Queria tomar o pequeno-almoço no centro de Santiago. Desci o Monte do Gozo, passando por todo o enorme complexo da Ciudad de Vacaciones. Foi quando me apercebi que estava praticamente colado a Santiago. No topo da última colina, esperei que o céu clareasse um pouco mais.

Amanhecer às portas de Santiago

Uma placa do lado esquerdo da estrada por onde seguia, indicava o facto, tinha chegado a Santiago de Compostela. Vi novamente um marco com a distância. Deixara de os ver no quilómetro 11. Estava a 2km da catedral, o quilómetro zero do Caminho Francês. Percorri lentamente, sem pressa, a parte nova da cidade. Era como que um passeio, diferente de todos os outros dias no Camino.

Entrada em Santiago de Compostela

Encontrei uma tabuleta para o segundo e último albergue de peregrinos em Santiago, o albergue Acuário. Àquela hora provavelmente encontraria lugar. Mas deixar já ali a mochila e entrar tão cedo num albergue não me parecia bem. Queria fazer todo o caminho até à catedral com a mochila. Não me libertar daquele peso que contribuía para a condição de peregrino, pelo menos para a minha. No fundo, também queria ficar hospedado no centro da cidade. Continuei.

Segui as setas amarelas escondidas pela cidade, provavelmente despercebidas para um qualquer turista. Passado um pouco, um grupo de peregrinos que seguia a alguns metros à minha frente, após falar com uma mulher espanhola, começou a caminhar para trás, quando uma seta amarela apontava claramente para a frente, na direcção para onde ia. Perguntei à mulher se o caminho não era por ali. "Si, lo camino Francês és por aqui, mas no pasa por la catedral". Ridículo! Nunca cheguei a saber se o Caminho que seguia passava pela catedral. Acho muito estranho não passar. Mas o que é certo, é que o caminho que me indicou, ao fim de 15 minutos, foi dar à Catedral. Minutos antes, conseguira ver pela primeira vez as suas torres à distância.

Torres da catedral à distância

A entrar na parte velha da cidade

A caminho da catedral

Santiago de Compostela

Quase lá!

Chegara finalmente à catedral! Estava na praça do Obradoiro. Tinha feito o Caminho de Santiago a pé. Cada centímetro dele. Passo a passo. Só dias mais tarde é que digeri esse facto. Porque na realidade o meu destino sempre fora Finisterra. Santiago de Compostela era uma meta importante, contudo, era uma das muitas etapas intermediárias. Mas não deixava de ter uma mística enorme. Estava em Santiago! Tinha feito o Camino!

Ainda o sol não se elevara por completo. À sombra da catedral.

Fiquei algum tempo na praça. Sabia que não iria encontrar as caras que queria ver, os companheiros do Camino, mas tinha uma réstia de esperança que alguns surgissem. Sempre que encontrava alguém que conhecera nos últimos dias, as palavras de ordem eram sempre "congratulations", "congratulationes", "congratulacion", "felicitazione", as palavras perdia-me nas várias línguas, mas o intuito era sempre o mesmo. A troca de abraços, os apertos de mão, os beijos na face. Por vezes encontrava algum peregrino que me acompanhava por mais de uma semana. Os laços eram mais profundos com eles. O reencontro mais caloroso. O Miro! Estava lá! O Miro acompanhava-me desde o meu segundo dia. Recordou-me, com emoção, quando me viu a descer umas escadas cravadas na terra, no meu terceiro dia, à saída de Zubiri, quase sem conseguir dobrar os joelhos, sob imensas dores, demorando quase 15 minutos para o fazer. O Miro é muito expressivo nas suas descrições, e fazia sempre uma careta com a língua de fora no canto da boca quando me imitava a descer escadas com as dores nos joelhos. E ali estávamos os dois, sob a sombra da catedral.

Tomei o pequeno-almoço num dos cafés junto à catedral, juntamente com a Jasmine, um alemão e uma sul-coreana que nunca me lembrava dos nomes. Já eram 11:00 e cada vez víamos mais peregrinos sem mochilas. Decidimos começar a procurar por quartos para alugar. Vimos um que era bastante em conta, 12€ por pessoa. Um quarto com 4 camas, mas com condições péssimas. Noutra pediam 75€ por quarto, num hotel de duas estrelas. O quarto era espectacular. A Jasmine ficou por lá. Tinha recebido a notícia de que iria trabalhar para uma nova empresa, com um substancial aumento de ordenado, e não se importava de comemorar assim com aquela "extravagância". Eu e os outros não queríamos dar tanto dinheiro. Separámo-nos.

Ao percorrer as ruas de Compostela, uma pessoa surgiu a correr de dentro de um café e chamou-me. Era a Francesca! A minha primeira companheira de Caminho, embora por um curto espaço de tempo. As duas italianas estavam ali! A Francesca e a Lucia, a peregrina que caminhava lentamente sem pausas nos primeiros dias. Tinham chegado há dois dias atrás. Deixara de as ver há imenso tempo atrás. Foi muito bom revê-las. Iam-se embora no dia seguinte.

Ao caminhar para o local onde as italianas me indicaram estarem hospedadas, encontrei um quarto duplo por 35€, a poucos metros da catedral. Tinha casa de banho privada, e até TV. Um luxo para um peregrino depois de 31 dias a dormir em albergues. Agarrei logo o quarto, mesmo estando só. Pousei rapidamente a mochila e dirigi-me novamente para a catedral. Era o ponto de encontro de todos, e eram quase 12:00, que embora não católico, não queria perder a famosa missa. Novamente, imensos peregrinos conhecidos.

Vista da janela do quarto

Entrei na catedral, já cheia. Imensa gente de pé. O bispo celebrava a missa. Imensos padres, todos de vermelho, exibindo a cruz de Santiago. Dei uma volta pela catedral. Vi o túmulo do apóstolo. Entrei numa fila para umas escadas que subiam, sem saber para o que era. Cheguei a um pequeno espaço, por trás da figura de Santiago, de modo a que se possa cumprir uma das tradições na catedral. Um padre encontrava-se sentado em frente à estátua. Conseguia ver toda a catedral para lá da figura. Abracei a estátua com sinceridade. Para cumprir uma promessa que fizera a alguém, agradeci a Santiago pelo que me tinha sido pedido, em nome dessa pessoa. Esperei a missa toda que o botafumeiro começasse a balançar, mas tal só sucedia nos anos Jacobeos.

Missa na catedral

Já fora da catedral, encontrei a Ema. Despedimo-nos, sem qualquer esperança em voltarmo-nos a ver. O Miro perguntou-me se ia almoçar. Já estava com fome. "Vamos ao melhor sítio de Santiago! Casa Manolo.". Fomos os dois. Parámos primeiro num bar para uma caña com tapas. O Miro resolveu convidar as italianas para almoçar. Tinha o número de telefone de todas as peregrinas do Camino! Incrível. Recebeu um SMS de resposta. Não iam almoçar agora. Seguimos para o restaurante Casa Manolo. Realmente os pratos são enormes. Quase nem comi metade do segundo prato, um "churrasco". No final, Miro foi dormir uma "siesta". Fui dar mais uma volta.

Ruas de Santiago de Compostela

Os peregrinos que tinham ficado na Arca do Pino deveriam estar a chegar. Queria ver a Marie e a Gaeli de novo. E lá estavam elas em frente à catedral, cansadas e um pouco perdidas, sem sítio para dormir. Depois de falar com imensos peregrinos, conhecia praticamente as localizações de todas as pensões das redondezas. A minha pensão já estava lotada. Ajudei-as a arranjar um quarto duplo, por 30€, um pouco mais abaixo na mesma rua onde ficara hospedado. Mais barato que o meu! Ainda iam tomar banho, pelo que combinámos encontrar às 17:00 em frente à catedral. Depois de mais uma volta pela parte histórica de Santiago, fui ao encontro delas.

A catedral, agora com mais luz

Era bom estar com as duas, uma companhia familiar do Camino. O sentido de humor da Marie era terrível, e era impossível não estar de bom humor por perto dela. Queriam ver a catedral, e entrei novamente. Foi quando encontrei o Denis! Novamente alguém que conhecera no início do Camino, em Saint Jean Pied-de-Port. Tinha-o deixado de ver à saída de Burgos, onde me dissera que apanhara uma constipação na noite anterior. Nesse dia tinha voltado para trás, para Burgos, devido à constipação, tendo parado por um dia. Mas recuperara nos dias seguintes, andando sempre 30km por dia. Chegara a Santiago nessa tarde.

Foi a Gaeli que reparou "Que assustador, um olho a olhar lá de cima". Um olho dentro de um triângulo. Um símbolo Illuminati! Ali?!

Continuei a tarde e a noite toda com a Marie e a Gaeli. Penso que não falhámos nem uma rua de Santiago!

A rua mais estreita de Santiago?

Parámos para jantar umas tapas. Acompanhei com cañas, elas com "speciz" ou "spetzi", não me recordo como chamam à bebida na Alemanha, muito popular por lá. No fundo trata-se de uma mistura de Coca-Cola com Fanta laranja. Por volta das 22:00, para meu alívio, encontrámos um Cyber-Café. Já só tinha espaço no cartão de memória da máquina fotográfica para mais 30 fotos. Tinha que descarregar fotos para a pen. Elas aproveitaram e entraram na net. Quando terminei, disseram-me para esperar só mais uns 10 minutos. Fui dar uma volta. Reencontrei a Gordana! Falámos um pouco. Olhei para o relógio. Detestava as despedidas no Camino. No dia seguinte a Marie e a Gaeli iriam de autocarro para Finisterra para se reencontrarem com a Julia. Fiz algo que normalmente nunca faria. Regressei para a pensão. Nunca mais as vi.

Anoitecer em Santiago

Estava cansado e o dia seguinte iria ser mais um dia no Camino. No entanto, estava já no Caminho de Finisterra. Tinha acabado o Caminho Francês. Sentia que iria ser diferente, em todos os aspectos. Não sabia bem porquê.

8 comentários:

Anónimo disse...

Estou sem palavras... Sei q o teu Camino ainda n está terminado, mas deve ser uma emoção enorme para um peregrino entrar, finalmente, em Santiago.

Acredita q até me vieram as lágrimas aos olhos! (eu sei q sou uma chorona, q fazer???)

Beijokas, e a continuação de uma boa 'Caminada', Isabel Prec

Rui disse...

Oi Isabel,

Sim, Finisterra foi em tudo superior a Santiago. Mas para muitos que também estiveram em Finisterra comigo, Santiago foi o expoente máximo da emoção no Camino.

Acho que tudo depende do nosso objectivo final no Camino, se Santiago ou se Finisterra (ou Muxia... ou Padron). Alguns até determinam o final do Camino de onde começaram, voltando para trás, fazendo o caminho inverso. Para a Jasmine, o final do Camino seria quando molhasse o pé no oceano. Para a Marie, quando regressasse à Alemanha. Cada um tem o seu Camino.

Em Santiago não senti aquela sensação de ter completado o caminho tal como senti em Finisterra. É uma sensação em que as 24 horas do dia eram ocupadas com algo que deixou de existir. A de abandonar tudo e todos daquele mundo. A de, embora não fosse isso, percorrer 1000km durante 34 dias para apenas estar num local numa determinada hora do dia, por breves minutos.

Mas entrar em Santiago não deixou de ser algo enorme.

Van Dog disse...

Um uauff para o Gato!

Unknown disse...

:) Deve ser uma experiência fantástica... Obrigada por a partilhares connosco.

Rui disse...

Van Dog,

Um uauff-ruff do Gato para ti e para o teu dono!


Ceci,

É mais que fantástico. Tens que experimentar... :)

Anónimo disse...

rui, que energia!

Anuska disse...

Cada vez que leio as tuas aventuras não consigo deixar de sentir uma pontinha (grande) de inveja :) que espectáculo!!
Bj

Unknown disse...

Rui,

:) Um dia destes exprimento. Já peregrinei, mas nunca pelos caminhos de Santiago, muito menos distâncias tão grandes. ;)