sábado, 26 de janeiro de 2008

Dia 30: Ribadiso - Monte do Gozo

Acordei novamente cedo, às 6:00. Já estava no meu horário biológico. Já não conseguia acordar a outra hora. A Marie e a Gaeli estavam acordadas e sorrimos a desejar o bom dia típico. Não sei porque decidi não esperar por elas. Queria caminhar só novamente. Não sabia bem porquê, mas decidi não pensar muito no assunto. Apenas caminhar.

Neblina matinal. Lindo!

Em Arzúa tomei o pequeno-almoço num café. Foi aí a última vez que vi o Diego. Sem saber ainda, nesse dia, iria ser a última vez que iria deixar de ver praticamente todos os peregrinos até então do Camino.

Arzúa. Fiquei fascinado por caminhar na neblina.

Não estava nevoeiro, mas sim uma névoa rasteira ao chão. Foi a primeira vez que a apanhei no Camino e fiquei fascinado pelo efeito.

A caminho de Calle

Parei novamente em Calle para um bocadillo. Enorme! Ficaram todos surpreendidos com o tamanho. Que exagero!

Bocadillo gigante

Para minha satisfação, a neblina demorou a desaparecer.

Caminhava muito rápido, sem qualquer dificuldade. Sentia a velocidade. Passava velozmente por todos sem qualquer esforço. Mesmo com sol. Estava a adorar a sensação.

Já tinha dito que adorei a neblina?

Camino

Calle

Parei em Cerceda para uma Coca-Cola. Continuei rapidamente. Passei por Santa Irene, o local que a Julia tinha falado. Era realmente um deserto. Vi que existiam dois albergues, e mais nada. Nem mais um edifício. No entanto, uma placa indicava 300 metros para o centro do pueblo. Não passei por lá.

Cheguei a Arca, ou melhor, vi a Arca do Pino à distância. O Camino não passa pelo pueblo como indicado pelo meu guia. Apenas passa por um pavilhão desportivo, ou algo do género, e por um café. Teria que sair do Camino para chegar a Arca do Pino. A ideia não me agradou. Bebi uma Coca-Cola e revi umas 20 vezes o mapa da etapa do dia seguinte "Arca do Pino - Santiago de Compostela". Os que passavam por mim, poucos, iam para o Monte do Gozo, e todos me diziam que não lhes agradava a ideia de ficarem ali, tendo que no dia seguinte caminhar muitos quilómetros, perdendo a manhã em Santiago de Compostela. Também não me agradava essa ideia de chegar tarde a Santiago. E não me agradava perder novamente todas as caras conhecidas que iriam ficar em Arca. Mas parecia-me a coisa certa a fazer. Comecei a caminhar. Iria apontar o destino até ao Monte do Gozo. Iria fazer novamente 40km num dia. Também não queria ficar com o estigma dos 40km. Fisicamente sentia-me apto para os fazer, e para ir além deles.

A caminho do Monte do Gozo

A subida a pique de 150m, um pouco depois da Arca, abrandou-me um pouco. Passei ao lado do aeroporto, mas não se conseguia vê-lo. Um avião passou mesmo por cima de mim. Estava tão perto. Passei por Andrew, o Australiano. O molho de folhas de Eucalipto penduradas na sua mochila denunciavam-no sempre. Continuava a coxear, com imensas dores, agora também a tomar Voltarem. Tinha ficado em Arzúa e iria também para o Monte do Gozo. Mas ia lento demais. Despedi-me e continuei com o meu passo.

Em San Paio, parei para uma excelente "tortilha de patatas" com tomate e uma cerveja. Conheci o casal de alemães com a sua filha. Tinham começado em Sarria, numa distância suficiente para que pudessem fazer 100km a pé até Santiago, o mínimo exigido para que seja uma "peregrinação a sério". Sucedeu algo que considerei terrível na altura. Estava na mesa deles a conversar e o homem alemão fez um gesto de que estava com dores nas pernas. Sem dar por isso, saiu-me "I've been walking for 30 days, and I still have pain", mas num tom monocórdico, absolutamente sem expressão, sem ênfase, sem qualquer emoção na voz ou no corpo, exactamente igual ao tipo que vinha a caminhar desde Oslo sem dinheiro, o qual notei algo de estranho nele. Era aquilo o que notei de estranho. Tinha acabado de fazer exactamente o mesmo. Detestei. Porquê? Seria aquele o destino para onde caminhava? Para ver as coisas do caminho com uma naturalidade tão grande que no fundo só sobrasse a indiferença? Nunca. Nunca mesmo. Jurei a mim próprio que nunca ficaria assim. Nem com o Camino, nem com nada. E foi a primeira e a última vez que tal sucedeu.

Os alemães disseram-me que faltavam 6km até ao Monte do Gozo. Na realidade, tinham-se enganado, e faltavam 15km! Quase o dobro. É horrível quando caminhamos uma distância muito maior do que ela é na nossa mente. Custa imenso! Principalmente no final de 40km.

Não sabia o que iria encontrar no Monte do Gozo. O meu guia, como já vinha a ser hábito nas últimas etapas, não entrava em detalhe nenhum. Nem sequer mostrava o tamanho dele no mapa. O meu receio era de que o albergue já tivesse lotado. Quase todos os peregrinos ficavam no Monte do Gozo, no penúltimo dia para Santiago. No entanto, ansiava por ver Santiago à distância. Era o primeiro local de onde os antigos peregrinos conseguiam ver as torres da catedral á distância.

Monte do Gozo

Tinha chegado a Monte do Gozo, exausto. Perguntei a duas peregrinas sem saber de onde eram, com a palavra universal "albergue?". "Three more minutes, straight ahead". Vi o enorme monumento no monte com as duas figuras de peregrinos viradas para Oeste. Olhei também. De início a copa de árvores tapava-me a vista para o horizonte. Mas à medida que caminhava, Santiago surgia aos poucos á minha frente. Tão perto. Podia lá chegar em menos de uma hora.

Monumento ao peregrino

O albergue situava-se mais abaixo, num enorme complexo intitulado de "Ciudad de Vacaciones". Um pouco estranho. Como um coreano me disse no dia seguinte, explicando a razão por não ter ali ficado "a little too modern". Vi numa placa a indicação de 170 camas. O albergue era enorme e apenas ocupava uma pequena parte do complexo.

Ciudad de Vacaciones

Contudo, apenas uns 30 peregrinos se encontravam ali. Apenas conhecia uns 8 peregrinos. O David, o TGV. Um grupo de 3 espanhóis que caminhavam juntos desde Estella. A Jasmine, a croata alemã. Uma sul-coreana e um alemão. O Andrew chegou horas mais tarde, a coxear. Tinha conseguido!

Um substituto do hospitaleiro fez o meu registo. Fiquei num edifício um pouco velho. Os colchões já tinham visto dias melhores. Conheci o meu companheiro de quarto, Walter, um brasileiro. Tinha feito o Camino de bicicleta e iria regressar no dia seguinte para o Brasil.

Ciudad de vacaciones

Mais tarde chegou Manuel, o hospitaleiro. Uma figura. Um tipo de cabelos pretos encaracoladas, que fala e fala e fala e... fala imenso! Mas extremamente simpático. Disse-me para mudar para o edifico novo, pois era muito melhor. De facto, foi como mudar-me para um hotel. Fiquei num quarto apenas com o Andrew. Tudo novo e a cheirar bem. Almofadas! O edifício velho não tinha almofadas.

Sentei-me numas escadas a ver o pôr-do-sol por trás de Santiago. Foi um dos melhores pôr-do-sol de sempre. Existia uma tranquilidade no ar, partilhada por todos os peregrinos. Conseguíamos mesmo senti-la. Uma serenidade incrível. Todos olhavam para Santiago, na direcção do sol. Estava ali o final do Camino para muitos. Foi belo.

Pôr-do-Sol com Santiago no horizonte

Fui jantar ao self-service da Ciudad de Vacaciones com o Andrew. Conversámos um pouco. Contou-me as suas razões para fazer o Camino, e bastante sobre o modo de vida na Austrália.

No final do jantar chegou Bernard. Tinha acabado o Camino no dia anterior. Tal como muitos peregrinos que chegavam à noite, todos diziam que não havia lugar em Santiago. O albergue maior tinha fechado no final de Setembro, e nenhum deles conseguira lugar em hotel ou pensão. Bernard não largara a sua excentricidade. Tinha deixado a sua "bicicleta" em frente à esquadra do polícia para a guardarem, e caminhava com uma mochila, mas... com dois sacos pendurados à frente, nas alças, junto ao peito. Airbags para o caso de cair, como lhe sucedeu no Camino anterior. Algures durante o Camino, tivera a brilhante ideia de pedir "donativo" por cada foto que lhe tiravam. Pedia 1€. Fizera mais de 50€ em poucos dias. Como a Marie disse quando lhe contei "pilgrims buy any shit". De facto, turigrinos. Despedi-me de Bernard. Iria voltar para a Bélgica no dia seguinte.

Conheci uma jovem alemã e um Japonês que fizeram a Via de la Plata. Muito dura, pelas descrições deles. As distâncias entre pueblos chegavam por vezes aos 30km, sem nada entre elas.

Deitei-me às 22:00. Estava exausto. No dia seguinte estaria em Santiago.

3 comentários:

Anuska disse...

adorei a forma como escreves!!! só de ler dá vontade de embarcar nessa aventura que passaste:) bj

Rui disse...

Obrigado Fénix! Sempre pensei que os leitores do blog fossem aqueles que já fizeram o Caminho ou que estejam a pensar em fazê-lo. A ideia de poder entusiasmar alguém a partir para o Caminho é fantástica, mas não o escrevo com essa pretensão ;)

Mas dou-te toda a força para que o faças no futuro! Mete a mochila às costas e o pé no Caminho. Ele está lá para todos ;)

Anónimo disse...

Farei o Caminho este ano e gostei muito do teu diário, das fotos e dos comentários que fizeste ao longo de todo o trajeto. Parabéns pela perseverança!!