terça-feira, 15 de janeiro de 2008

Dia 24: Villafranca del Bierzo - La Faba

Saí do albergue bem cedo, antes das 7:00. Começava a ficar bastante frio pela manhã. Fechei as entradas de ar do casaco e coloquei as luvas.

Saída do albergue. A lua no mesmo sítio onde o sol se pôs no dia anterior.

Na noite anterior, em conversa com o Italiano, vimos que existiam duas alternativas de caminho até Trabadelo. A da direita, mais a norte, passava por cima de um enorme monte, com uma elevação considerável. A da esquerda, mais a sul, não. Mais uma vez, o meu guia falhava em não me informando da elevação. Escolhi o caminho mais a sul, pois tinha a grande subida até O Cebreiro no final do dia, e não me queria cansar logo pela manhã. Não foi fácil encontrar a saída de Villafranca seguindo esse caminho. Finalmente, um habitante local indicou-me o sítio. Tinha uma marca gigante a indicar o caminho, tão grande que nem dei por ela. À minha frente encontrava-se um túnel rodoviário enorme que atravessava a montanha, com uma enorme vieira esculpida na sua entrada, na parte superior. Claro! Se um caminho ia por cima da montanha, o outro teria que a atravessar de alguma forma. Por baixo.

Entrei no túnel, ainda de noite. Quando cheguei a meio, deu-se o inesperado. Olhei para a frente e vi o túnel como que a expandir-se, um pouco como aqueles efeitos que se vê nos filmes. A saída estava longe, muito longe. Olhei para trás. A mesma coisa. A mesma sensação. Estava exactamente no meio do túnel. O coração disparou. A respiração era apressada. Uma sensação do passado que julgava extinta. Um ataque de pânico! A claustrofobia, uma réstia dela, ainda estava presente dentro de mim, escondida, apanhando-me como numa armadilha. Estava num pânico irracional. Estava só. Nem queria acreditar que aquilo me estava a acontecer. Era como se todo o peso da montanha fosse sentido por cima de mim, e à minha volta. Preso. Peguei no telemóvel. Precisava ouvir alguma voz. Eram 6:00 no visor do telemóvel, ainda com a hora de Portugal. Não ia incomodar ninguém. Virei-me contra a parede do túnel. Tentei acalmar-me. Tinha que sair dali. Avancei um passo. Depois outro. Bloqueei o raio de visão com a aba do chapéu de modo a que só pudesse ver o chão. Avançava lentamente. Contava as luzes rectangulares mais espaçadas na parede oposta do túnel, uma por uma. Cinco. Quatro. Mais uns passos. Três. Duas. O pânico era enorme. Uma. Quase. Saí! Ar fresco! Respirei o ar frio da noite. Estava emocionalmente despedaçado. Demorei a manhã toda para me recompor.

Pereje

Parei em Pereje para um café. Pensei em enfrentar novamente um túnel. O sangue gelou. Perguntei à empregada se ainda haviam mais túneis naquele percurso do Camino. Disse-me que haviam mais túneis, mas não sabia se o Camino passava por eles. Não importava. Por um lado, queria enfrentar novamente aquele fantasma. Por outro, alegrava-me que nunca mais visse nenhum túnel à frente. Só mais tarde me apercebi que ainda bem que não me agarrei à ideia de telefonar a alguém quando me encontrava dentro do túnel, pois provavelmente não teria rede, e aí o pânico seria ainda maior quando o constatasse na altura.

A caminho de Trabadelo

Por um lado, amaldiçoava o meu guia por não mencionar algo tão óbvio como um túnel, mas por outro, sabia mesmo que mencionasse, nunca iria desconfiar, pois nunca tinha atravessado um túnel daquela dimensão a pé. Raios, raios, raios. Segui em frente. Estava num vale profundo e apertado, serpenteando por entre ele. Estava frio, muito frio. O sol não iria penetrar tão cedo ali dentro. Via-o brilhar, reflectido, apenas nos cumes das paredes dos montes que me rodeavam, lá em cima. Por cada curva que descrevia, olhava ansiosamente para ver se terminava num túnel. Mas não encontrei mais nenhum.

Trabadelo

Finalmente cheguei a Trabadelo. Parei para comer um bocadillo, sentando-me numa esplanada.

A caminho de La Portela

O caminho até Las Herrerías é agradável. Sempre por pueblos simpáticos. Sempre a subir, mas discretamente. Em Las Herrerías parei para descansar. Mais para ganhar fôlego mental do que físico. Estava quase no início da escalada para O Cebreiro. O sol brilhava forte, tendo afastado por completo o frio da manhã, e estava agora muito calor.

Estátua em La Portella. "A Santiago 190km", "A Roncesvalles 559km". De vez em quando as distâncias atingem-nos.

La Portella

Ambamestas

Ruitelán

Las Herrerías de Valcarce

A caminho de Hospital

Hospital. Parei para dar passagem às vacas.

Dei início à escalada. Não é algo que se comece sem dar por ela. Não. Quando se começa a subir, os passos abrandam e o corpo pesa. O corpo aprende o seu ritmo durante o Camino. E sem darmos conscientemente por isso, vemos que este abranda. É o início de uma subida. De início por uma estrada alcatroada, depois por um trilho de terra e rochas inacessível a peregrinos em bicicleta. É duro. Muito duro, mesmo. Faz lembrar vivamente os Pirinéus. Contudo, todo o percurso é encoberto por vegetação. Muito verde e belo. Diminui em muito a sua dificuldade, mas cada vez que apanhava um troço descoberto pelo sol, tremia só de pensar se as árvores acabassem juntamente com a sua sombra. Mas tal não sucedeu até La Faba. Uma aldeia minúscula. De facto, nem teria albergue se uma associação Alemã de peregrinos não o tivesse construído das ruínas de uma casa.

Subida para La Faba

Tencionava descansar apenas um pouco, mas pensei novamente no sol. Faltavam apenas 4km até ao O Cebreiro. Era pouco, mas com aquela subida, sem saber se existiam árvores, só me lembrava da hora que demorou a subir o monte à saída de Castrojeriz, com apenas 500 metros de percurso. Decidi-me por ficar no albergue.

Albergue de La Faba. Estátua de um peregrino carregando uma pedra na mão, todos os seus problemas, para deixá-los em Santiago.

Das cerca de 40 pessoas que lá estavam, eu e uma mulher, deveríamos ser os únicos que não eram alemães ou que não falavam alemão. Alemães, Austríacos, Suíços, Belgas, estavam todos lá, num albergue gerido por alemães. Todos assumiam que eu era alemão, e fartava-me de dizer, sorrindo, sempre que alguém tentava falar comigo, "I don´t speak Deutsch".

Albergue de La Faba. Vista para o vale escalado horas antes.

Fui jantar ao único café da aldeia. Cobravam 9€ pela "cena". Era caro. O único mini-mini-mini-mercado não tinha praticamente nada. Na minha mesa, sentou-se a mulher da Nova Zelândia e... o Bernard! Devo dizer que estava com medo do que aquilo fosse dar. Já aqui tinha falado um pouco do Bernard, mas não muito. Ora bem, Bernard era aquilo a que chamamos de... bem, cromo do Caminho! Dito de uma forma para que alguém que nunca fez o Camino perceba, basicamente no Camino encontram-se os peregrinos e os cromos. Daqueles coleccionáveis e raros mesmo. Bernard fazia o caminho pela segunda vez, desde a porta da sua casa, na Bélgica, com uma "bicicleta", se é que se pode chamar isso. Tinha apenas uma roda, e era puxada por ele, a pé. Era como que um reboque. O estilo de Bernard, com o seu cabelo e barba cinzenta e ar jovial, vestido à Indiana Jones, de castanho e cinzas, e as suas conversas fora do comum, davam-lhe uma fama por todo o Camino, entre todos os peregrinos.

Utilizei o termo "cromo" de uma forma totalmente superficial. Bernard era muito mais do que isso, e o jantar com ele foi incrivelmente recompensador. A mulher da Nova Zelândia despediu-se cedo, pois queria assistir à missa na igreja ao lado do albergue. Sabia que a missa iria ser em alemão, e não estava com muita curiosidade em assistir. Depois de se retirar da mesa, fiquei praticamente duas horas a falar com Bernard.

Explicou-me porque fazia aquilo e porque destoava de uma forma tão estranha. O Bernard era incrivelmente lúcido, dado às suas paixões pela vida e pelo bizarro, de uma forma totalmente consciente e premeditada. Sabia muito bem a vida que não queria levar. Sabia a vida que tinha levado para o desequilibrar emocionalmente. Falou-me de imensas coisas. Das aulas de Cabala que dava na sua cidade Natal. Da vida que levava, fazendo uma "grande extravagância" por ano, como fazendo o Camino daquela forma ou indo mergulhar no pacífico para satisfazer o seu hobby de fotografia subaquática. Deixou-me a pensar sobre muitas coisas.

"The only way to react to fear, is by action."

Lembro-me destas palavras do Bernard, ainda hoje. Depois do episódio do túnel, ao voltar para Portugal, descobri que fiquei com uma claustrofobia imensa, não apenas limitado a túneis, em que muitos deles já passava por eles todos os dias, como também a parques de estacionamento subterrâneos e sítios "apertados". Seguindo o conselho do Bernard, foi a chave para começar a superar tudo isso. E dias mais tarde, ouvi exactamente a mesma coisa num consultório de um psicólogo. Não há nenhum comprimido mágico. Terá que ser através da acção.

Voltámos para o albergue. A missa tinha terminado. Várias peregrinas saíram da igreja ainda a cantar cânticos em alemão, em coro, à noite, com velas acesas. Muito belo. Sentei-me um pouco na sala do albergue. O Bernard discutia alegremente com a hospitaleira devido à sinalização do Camino, pois ele tinha tomado o percurso inacessível a peregrinos de bicicleta, com a sua... bicicleta. Um belga meteu conversa comigo. Iria encontrá-lo durante todas as etapas do Camino até Santiago de Compostela. Caminhava com a mulher e com outro casal Belga que tinha iniciado o caminho da porta da sua casa, na Bélgica. Falou-me imenso sobre o país dele, e de como estava instável, com a rivalidade entre o norte e sul, que provocou a que o país ficasse sem governo naquele momento. Depois de conversar um pouco, deitei-me às 22:00, juntamente com todo o albergue. A subida de O Cebreiro ainda não estava concluída.

3 comentários:

Uwish4 disse...

Pessoas como o Bernard são de facto inspiradoras, não é? :) Eu ando com um medo parvo, parvo, parvo... e acho que a unica forma de o superar é mesmo enfrentá-o, agir...

Se te contar o meu medo talvez aches uma insignificancia... mas tenho medo de reformular o meu portfolio, o meu CV em inglês, tenho medo de concorrer a trabalhos na minha área... medo do fracasso... e todavia já concorri e já trabalhei em inumeros empregos fora da área, coisas que nem percebia nada e arrisquei e aprendi e trabalhei bem até...

jesus! a minha cabeça é tão complicada!...

vou seguir o conselho do Bernard.. vou almoçar e logo a seguir vou meter "mãos na massa", dê por onde der, saia o que sair... talvez o mais dificil seja começar...

Espero que estejas orgulhoso das tuas evoluções a lutar contra essa tua fobia. Um passo de cada vez.

Beijinhos!

Uwish4 disse...

PS: como se está a portar a casinha nova? ;)

Rui disse...

Hola Tatoia!

É sempre bom ver-te por aqui :) A casinha nova porta-se bem. Mudei-me no início do mês. Ano novo, casa nova. E trabalho novo também! E ontem deixei de fumar... nova tentativa. Por isso, acho que estou um bocado blearggg... Andando em frente, estou a ver pelo teu blog que já meteste mesmo as mãos na massa. Ainda bem! Agora espero que termines, pois não sei se és como eu, com a mania que pode deixar tudo inacabado :D