domingo, 11 de novembro de 2007

Dia 18: El Burgo Ranero - León

Saí de El Burgo Ranero antes das 7:00. Sabia que à minha frente se encontravam 12km sem nenhum pueblo, até Reliegos. Lembrava-me constantemente da fiesta de Reliegos, da conversa com o Francês, e como a tinha perdido. A caminhada foi longa e sem pausas. Caminhando só e sem nada para ver, parar um pouco que seja, atrasava enormemente a viagem, por isso evitava-o. O objectivo do dia era chegar a Mansilla de las Mulas e no dia seguinte chegar a León.

Nascer do sol a caminho de Reliegos

Em Reliegos parei para um excelente bocadillo de queijo e pasta de tomate com alho. Na esplanada, quando bebia o café solo, reparei melhor em duas caras familiares que me acompanhavam desde Sahagún. O Diego, um sul-coreano adolescente, e um Espanhol que me esquecia constantemente do nome, de meia-idade, que falava que se desunhava, mas ao contrário do Luís, falava de tudo e mais alguma coisa, menos dele. Diego não era o seu verdadeiro nome, era o seu "nome espanhol" como me explicou. Percebi logo porque usava o seu nome espanhol quando me disse o seu nome em Coreano, impossível de memorizar à primeira, ou até mesmo à segunda. Todos os sul-coreanos tinham um nome em Espanhol. Um rapariga que conheci mais tarde, cujo nome em Coreano era o de uma flor, tinha então o seu nome Espanhol de "flor".

A caminho de Reliegos

O Diego foi o único que conseguiu dizer o meu nome à primeira. "Ah! Rui, como Rui Costa?". Sim, uma grande surpresa. Nem os Espanhóis conseguiam pronunciar o meu nome à primeira. Mais tarde, em conversa com outro sul-coreano, que teimava em pronunciar o meu nome com "Lui" e não "Rui", ao fim de algumas abordagens, lembrei-me do Diego, e perguntei se conhecia o jogador de futebol "Rui Costa". "Yes, I know him. But I call him 'Lui'!". Ahhh... nem todos os sul-coreanos no Camino falavam tão bem espanhol como o Diego. De facto, foi o único que conheci que falava Espanhol e não Inglês.

Entrada em Reliegos

Quando ainda me encontrava na esplanada, apareceu um espanhol num carro que começou a distribuir folhetos publicitários de um albergue novo em Puente Villarente. O meu guia não me indicava nenhum albergue nesse pueblo, pelo que o guardei. Inconscientemente já começava a alargar a etapa do dia.

Parti de Reliegos para Mansilla de las Mulas. Era o último troço da etapa planeada. O céu estava completamente limpo e o sol começava a brilhar com toda a sua força. À distância vi uma mancha castanha no caminho. Era inconfundível. A australiana chamava-o de "Mister Santiago". Era um peregrino com uma barba cinzenta enorme que viajava vestido como um peregrino de outrora, com uma enorme capa castanha, grossa e pesada, que chegava até às suas sandálias de couro, viajando assim ao sol e à chuva. A capa continha símbolos do Camino, com vieiras e cruzes de Santiago. O peregrino tinha uma particularidade, de não ter praticamente voz nenhuma. O barulho mais alto que emitia assemelhava-se ao som de um tapete de plástico eriçado a roçar com velocidade num piso de cimento, mas muito mais alto. Quando o ouvi pela primeira vez em Sahagún, achei-o horrível. Em Burgo Ranero já não me fazia impressão. Passei por ele, e como todos os peregrinos que passavam sempre por outro peregrino era obrigatório uma saudação. Ou "hola", ou "buenos dias" ou na maior parte das vezes "buen camino". Aqueles mais antipaticos, que eram poucos, mas existiam, nunca cumprimentavam ninguém. Ao passar pelo peregrino, conseguiu-me dizer numa voz muito baixa e rouca "buen camino". Buen Camino peregrino.

Mansilla de las Mulas. Monumento irreal ao peregrino.

Cheguei rapidamente a Mansilla de las Mulas. Rápido demais. Sentia que era cedo para parar de caminhar. Entrei no albergue. Vislumbrei um pequeno pátio com mesas e cadeiras no fundo de um corredor, bastante acolhedor. Mansilla de las Mulas pareceu-me um excelente sítio para ficar. Fiquei até encantado com o pueblo. Não sei então porque saí do albergue. Entrei num café, fora do Camino, com uma esplanada num relvado. Bebi uma coca-cola e estudei cuidadosamente o mapa e as distâncias. Encontrei o folheto do novo albergue em Puente Villarente. Eram só mais 6km, porque não? Segui caminho.

Um cão estava determinado em viajar comigo e seguiu-me durante vários quilómetros, mesmo tendo água e comida numa das ruas em Mansilla. Quando o sol começou a aquecer mais, voltou para trás. Fora do pueblo parei para comer algo. Encontrei a Francesa a almoçar. Comemos juntos e falámos um pouco. Ela também tinha o mesmo folheto do albergue em Puente Villarente e dirigia-se para lá. Acabei de comer rapidamente e segui caminho. Assim que saí da sombra das árvores, um vento quente e abafado caiu sobre mim. O sol! Estava mais calor do que nunca. Na estrada, ao lado, conseguia ver ondas de calor a emanar do alcatrão. Parei imensas vezes, sempre bebendo imensa água, tendo cuidado para não ficar sem ela. A pele dos meus braços começara novamente a estalar com bolhas de água.

Puente Villarente. Ficar ou seguir para León?

Cheguei a Villarente. Consegui encontrar mais do que um albergue, mas todos eles eram privados. Não simpatizava muito com albergues privados. Fui avançando, passando por pelo menos dois albergues. Cheguei a um café com esplanada e encontrei o Diego e o Espanhol a beber uma caña. Aqueles tipos eram piores que os irlandeses. Até de manhã bebiam cerveja! Sentei-me com eles. Iam para León. Foi como uma pancada, nem medi os quilómetros, e decidi que também iria para León. O espanhol disse-me que seriam aproximadamente 11km. Mentalmente fiz as contas para três horas. Tudo se resumia a três horas. O sonho de chegar a Finisterra estava novamente a tornar-se em realidade por apenas três horas. Parece simples, mas caminhar mais três horas depois de caminhar 30km, não é para aceitar de ânimo leve. Não queria acreditar que iria fazer novamente 40km num dia. Iria conseguir? Já estaria novamente apto? Medi todas as consequências e aceitei-as. Estava bastante prevenido e mais experiente. Comi qualquer coisa no café e bebi uma caña. Coisa inteligente. Andava a sais na água e bebia álcool antes do sprint final. A caminho. O sol! Raios. Já passavam das 15:00 e o calor parecia não diminuir.

Sinceramente não sei como cheguei a León. No dia seguinte, olhando para o mapa, se tivesse que tomar a mesma decisão, teria optado por ficar em Puente Villarente. A companhia de Diego e do Espanhol ajudaram muito. É muito mais fácil caminhar longas distâncias acompanhado. Faz toda a diferença. Fizemos o caminho passo a passo sob um sol tórrido. Primeiro Arcahueja, depois Valdelafuente. O percurso era horrível, como quase todos perto das grandes cidades. Finalmente, ao chegar ao Alto del Portillo, visualizamos León ao longe. Mas ainda faltava muito. Nas grandes cidades, desde a sua entrada até ao albergue, tudo é possível.

Alto del Portillo. León em todo o horizonte.

Cheguei a Puente del Castro, que era praticamente parte integrante de León. Sentia-me um pouco fraco e já chegava a temer pelo pior. Deixei o Diego seguir em frente e parei num café. Após um "bocadillo de lomo caliente", que estava excelente, senti-me mais revigorado e segui em frente. Entrei em León, e como temia, teria ainda que andar muito até à parte histórica da cidade.

Existem vários albergues na cidade, incluindo um municipal, mas a minha escolha recaía num em especial. O albergue das "Monjas", um albergue dirigido por freiras Benedictinas com enormes tradições. E o melhor, é que se situava mesmo no coração da parte velha da cidade, mesmo perto da Catedral. Era tarde, e temia que já estivesse lotado, mas o meu guia indicava uma capacidade de 150 camas. Após a longa busca de sinais do Camino dentro de uma grande cidade, cheguei ao albergue. Fui recebido no pátio por uma freira. "Necessitas de sitio para dormir?". Sim! Outra freira fez o meu registo e indicou-me as "regras da casa".

León

No fim de me instalar, tomar banho e já de roupa lavada, verifiquei que eram 18:40. Estava exausto e tinha muito pouco tempo para conhecer um pouco de León. A cidade é enorme! Não saí da parte histórica. Percorri todas as ruas até à catedral, onde entrei. A experiência odorífera de caminhar pelas ruas de León pode ser comparada ao estar parado à entrada de uma loja de perfumes como a Sephora! Até mesmo as espanholas que faziam o Camino, não dispensavam o seu perfume, e também a sua maquilhagem. Lembro-me que dias mais tarde, a sair de Molinaseca, numa subida em que já requeria longas inspirações de oxigénio, aproximei-me de três peregrinas espanholas quando o vento mudou e inalei sem esperar o perfume delas três... ia desmaiando!

Catedral de León

Fui jantar a um restaurante recomendado pelas freiras. Após alguns minutos, o restaurante estava lotado e dividi a mesa com um casal de peregrinos alemães. Foi um jantar muito agradável. Como era comum com todos os alemães, o Inglês foi a língua achada em comum. Era o último dia deles de Camino. Iriam regressar para a Alemanha no dia seguinte, mas regressariam no próximo ano para terminar o Camino.

Ruas de León

Depois do jantar, como sempre, ficava a abarrotar com os dois pratos que sempre serviam no "menu del peregrino", fui dar uma volta por aquela zona da cidade. As freiras disseram-me o nome daquela parte da cidade, mas esqueci-me. Pode-se considerar o "Bairro Alto" de León. Imensa gente! Bares em todas as portas e janelas. Estava uma noite de verão perfeita. Os bares abriam as janelas que serviam como mesas, com bancos nas ruas.

Tinha caminhado novamente 40km num só dia, e perdido quase todas as caras conhecidas. Apenas o Espanhol, o Diego e a Francesca com os Italianos. No albergue senti os olhares dos peregrinos em mim, como que um intruso. Ou como alguém que iria começar o Camino dali. Era normal muitos começarem o Camino de León, pois a partir dali era considerada a "melhor parte do camino". Como se isso existisse. Mas sim, em termos de paisagem, era a melhor parte, mas na altura ainda nem sabia o que me esperava.

Estava novamente no Camino para Finisterra. Já não iria necessitar de andar enormes distâncias num só dia. As caras que via em León, seriam aquelas que iria ver até Santiago de Compostela. Na altura não sabia, mas o albergue municipal de León não tem hora de fechar, e muito foram para aí. No entanto, o albergue das "Monjas" tinha regras estritas, e quem estivesse fora do enorme portão de madeira depois das 22:00, já não entrava. Faltavam poucos minutos para as 21:30, e queria conviver um pouco com outros peregrinos, então, abandonei a noite de León e dirigi-me para o albergue.

León à noite

Quando cheguei ao albergue, uma freira deu sinal a todos os que se encontravam no pátio para a seguirem. Tinha-me esquecido! A "benedicion" de que uma freira me tinha avisado horas antes. Seguimos todos e entrámos na igreja ao lado. Deram-nos um guia de acordo com a língua de cada um. Uma mulher perguntava se não havia em Português. Tinha apanhado o grupo de cinco brasileiros que caminhavam três dias à frente. Deram início à cerimónia. Há algo de estranho e belo num coro religioso só de mulheres. Ao todo eram umas 16 freiras. Algumas delas tinham uma voz divinal. Foi um momento único, em que mais uma vez, eu, um não-católico, estava numa cerimónia religiosa. Era normal no Camino. Voltámos para o albergue.

Nessa noite tive imensas dificuldades em dormir. O facto do albergue ficar no "Bairro Alto" tem as suas desvantagens. O barulho! Lembro-me de ter acordado às 2:00 para fechar a janela próxima da minha cama que dava para a rua. Só quando todos fecharam as janelas é que se fez mais silêncio e se conseguiu dormir. Nesse dia começou uma nova dor. Uma dor no calcanhar esquerdo, que surgia principalmente quando estava deitado ou parado, e que por vezes me acordava de noite. Essa dor iria persistir e apenas iria passar no segundo dia após ter regressado a Lisboa. Era mais uma dor. Mas uma que não me deixava descansar de noite.

1 comentário:

Ana disse...

Já aqui tinha vindo, mas sem tempo "para viajar". Vou passar a acompanhar - que bela aventura!

=)