domingo, 4 de novembro de 2007

Dia 17: Sahagún - El Burgo Ranero

Já não tinha o Yves por perto. Encontrava-se juntamente com a Viviane a uns dois dias atrás de mim. Tinha que ir a um médico. Não sabia o que estava a suceder comigo. Era normal acontecer o mesmo por duas vezes? Haveria algum perigo grave para a saúde por ter tido aquilo duas vezes muito perto uma da outra? Vi num poster colocado na parede do albergue que Sahagún tinha um centro de saúde que abria às 9:00. Não sabia o que me iriam dizer. Imaginei a possibilidade de me dizerem que não poderia caminhar mais, que andava a brincar com o coração e seria perigoso continuar. As lágrimas escorreram pelo meu rosto só de imaginar essa possibilidade. Porque é que cometia tantos erros básicos? Porque é que me esquecia deles? Comi o resto do jantar. Pelo menos já conseguia mastigar. Comi também o último pêssego. Entrei num café e bebi um café com leite e comi um bolo. Perguntei pelo "Centro de Salud" e dirigi-me para lá.

Quando cheguei ainda não eram 9:00. Achei estranho não encontrar ninguém na entrada, pois conhecia bem os centros de saúde em Portugal. Horas antes de abrirem as portas já todas as velhas, com uma saúde provavelmente melhor do que a minha, se encontravam à porta para ter consulta. Em Portugal também nunca abrem as portas antes da hora certa, nem que esteja a cair granizo. Portanto, esperei pela hora de abertura. Passado uns minutos uma enfermeira disse-me que a entrada era pelo outro lado. Oh não... temi pelo pior. Quando entrei, vi manifestarem-se os meus medos ao ver uns trinta idosos à espera de consulta. Raios! Pelos vistos a coisa não era muito diferente de Portugal. Iria ficar ali o dia todo. Expliquei a situação na recepção e mostrei o meu cartão europeu de saúde. Não fazia a mínima ideia de como se processavam ali as coisas. Dirigiram-me para uma outra sala de espera em que não se encontrava ninguém e disseram-me que um médico me iria chamar. Passado menos de cinco minutos, surge um médico que me conduz para o seu consultório. A consulta foi gratuita. Bolas! Já tinha ouvido falar do serviço público de saúde em Espanha, mas não esperava que fosse assim tão bom e eficaz! Contei tudo ao médico, em que me mediu a tensão, analisou a barriga e verificou o nível de açúcar no sangue. Estava tudo a 100%, sem nenhum problema. Disse-me para parar de imediato com o Voltarem. Deu-me quatro comprimidos para o estômago e receitou-me sais para beber num litro de água por dia, de modo a prevenir a desidratação.

Devo dizer que ainda estava a tomar Voltarem por cobardia, mais de modo preventivo do que outra coisa. O grande problema do Voltarem é os efeitos que tem no estômago. Muitas pessoas têm que tomar um protector para o estômago para tomarem Voltarem de seguida. Mas como o meu organismo não se ressentia com o Voltarem, continuava a tomá-lo... por 14 dias. Foi demais. Parei de imediato. E o engraçado é que quando parei de tomá-lo, todas as pequenas dores latentes que sentia por vezes nos joelhos pararam também! Fiquei aliviado, mas sentia-me ainda muito fraco.

Entrei num café e bebi mais um café com leite juntamente com umas torradas com manteiga e marmelada. Detesto marmelada com pão, mas olhava para aquilo como uma fonte de energia. Timidamente, comecei a caminhar. Não fazia ideia para onde ia, mas o facto de não perder um dia ficando parado, sabia muito bem. Quando senti de novo o ar do Camino, senti-me como uma nova pessoa. Foi como se iluminassem tudo à minha volta. Comecei a caminhar às 10:00. Já era tarde. Normalmente, àquela hora já teria caminhado uns 12 quilómetros. O sol estava forte e ainda me sentia fraco. Sabia que não podia ir muito longe, logo a etapa prevista até Reliegos era impossível. Talvez até Bercianos del Real Camino. Novamente o percurso fazia-se por uma senda, sempre ladeado do lado esquerdo por árvores plantadas em linha e já crescidas, onde o sol se encontrava, dando assim uma sombra agradável ao caminhar, e sempre com a estrada por perto. Não senti que fosse muito perigoso.

A caminho de Berciano del Real Camino

Chegando a Bercianos, parei num café. Comi um dos melhores bocadillos quentes do Camino, de chouriço assado, e bebi uma fanta. Comi com muita calma, e no final, passado trinta minutos, analisei as minhas forças. Sentia a fraqueza da noite anterior, mas sentia-me capaz de andar mais. Segui em frente. À medida que o sol se ia tornando mais forte, questionava-me se tinha procedido bem. Mas a distância para o próximo pueblo não era muita, e rapidamente o atingi. Estava em El Burgo Ranero. O meu guia indicava o albergue "Domenico Laffi" como um dos "más bonitos del Camino, hecho de adobe", e realmente nem queria acreditar que aquela construção que me indicavam como sendo o albergue, o era mesmo. Entrei num albergue privado que encontrei primeiro, mas após perguntar o nome do albergue, saí e entrei no Domenico Laffi. São as vantagens de levar um guia pesado na mochila. Muitos não o levavam.

A caminho de El Burgo Ranero

O hospitaleiro honrava o albergue. Voluntário, suíço, no albergue há poucos dias, ainda sem muita experiência, era de uma simpatia e hospitalidade extrema. Fazia-nos sentir bem. Não havia ninguém conhecido. Iria conhecer novamente todos. E realmente, era o que sempre sucedia. Encontrei a rapariga australiana da noite em Sahagún. Falámos imenso. Iria ficar em León por dois dias. Parecia que todos os que conhecia melhor, ou planeavam ficar para trás, ou caminhavam rápido demais. Não encontrava ninguém que me acompanhasse. Até o David tinha desaparecido. Todos.

Albergue Domenico Laffi

Fui à farmácia comprar os sais. Comprei uma garrafa de gasosa de um litro. Esvaziei-a e enchi de água juntamente com um pacote de sais. Sabia a sumo de laranja mortiço sem doce nenhum. Blarrrggg. O problema é que, para além da água, tinha que começar a andar com aquela garrafa cheia na mochila, acrescentando volume e principalmente peso. Mas adaptei a mochila à nova carga.

Jantei com a mulher Francesa que acompanhava Michele. Também ela iria terminar a sua terceira etapa do Camino em León. Falou-me das suas duas primeiras etapas por França, de como eram diferentes de Espanha, nas pessoas, nos costumes e na paisagem.

El Burgo Ranero

Durante o jantar apercebi-me que ainda não estava muito bem. Cada garfada era um sacrifício. Por vezes surgia uma vontade de vomitar tudo. Não acabei nenhum dos pratos. Na sobremesa, um "flan", dei apenas uma colherada que quase me fez deitar para fora todo o jantar. Precisei de andar quase até às 22:00 para digerir minimamente a comida. Era diferente da última vez. O relato de um Francês que ficou na Calzada del Coto, logo após Sahagún, sem poder caminhar devido a ter bebido água não potável de uma fonte, deu-me que pensar. Eu viajava com duas garrafas de 1/2 litro nas bolsas exteriores da mochila, de modo a serem acessíveis sem ter que tirar a mochila das costas. Com o sol quente, a água aquecia rapidamente, pelo que tinha o hábito de mudar a água em todas as fontes que encontrava de água potável. Logo, pode-se dizer que eu bebia água de TODAS as fontes do Camino. Se alguma tivesse água não-potável sem indicação, certamente teria bebido dela. Muitos peregrinos com esse medo, compravam toda a água que bebiam. O Bernard tinha-me ensinado um processo simples de saber se a água era ou não potável. Consistia em ver a temperatura dela com a mão. Se não estivesse gelada, era porque estava imprópria para beber, pois não vinha directamente ou totalmente das profundezas, da sua origem. Embora fosse um conselho a ter em conta, não era totalmente infalível.

No dia seguinte já teria que estar totalmente recuperado. Estava a doze quilómetros do objectivo, de estar novamente no caminho para Finisterra. São perto de três horas a caminhar. Dito desta forma parece mesmo muito pouco, mas na altura, colocar esses 12km em cima de uma etapa, ainda era imenso.


Anoitecer em El Burgo Ranero

2 comentários:

Anónimo disse...

Não tens escrito ultimamente.
Estás a fazer suspense?
Continua por favor.

Rui disse...

Pronto, pronto ;)
Tento colocar pelo menos um post por dia, mas por vezes é complicado. Cada entrada no blog demora tempo, não só a escrever, como também a organizar as fotos, a reduzi-las, a rever o texto, etc.