Fui um dos primeiros do quarto a acordar. Eram 6:00. Também fui um dos primeiros do albergue a sair. Não vi as horas, mas ainda era noite cerrada. Acendi a lanterna várias vezes para iluminar as marcas do Camino no escuro.
Já era tempo de reformar o meu "cantil". As garrafas de água saíram comigo de Portugal. Ainda estavam em bom estado, não?
Quando saí do Rabanal del Camino, via-se o clarear no horizonte, uma faixa clara sob a noite. Esta melodia não me saiu da cabeça até chegar à Cruz de Ferro:
Quase que estabelecia o ambiente. Estava tudo tão sereno. Tão calmo. Logo no primeiro passo desde a saída do albergue o Caminho faz-se a subir. Sempre a subir. A manhã estava fria devido ao vento que sopra naquela altitude. À medida que o dia ia nascendo, desejava ao máximo alcançar o ponto mais alto possível, de modo a poder ver o nascer do sol. Não o consegui, apesar de acelerar o passo. Na altura não o sabia, mas era fisicamente impossível. O topo ainda estava distante.
Fiquei fascinado pela paisagem durante todo o dia. Era deslumbrante. Talvez os Pirinéus superassem os Montes de León, mas para mim os Pirinéus foram... o que foram. Até à data, esta foi a melhor etapa do Camino em termos de paisagem, para mim e para outros com os quais falei. Fazendo uma perspectiva de todo o Camino, penso que consigo eleger este como um dos melhores percursos, juntamente com a subida e o topo de O Cebreiro e todo o percurso desde que se vê o oceano, do Crucero da Armada até Finisterra.
Ficava por alguns momentos parado, quase que hipnotizado pela paisagem. Cada quilómetro era uma nova maravilha. Até ao dia anterior estava com um pouco de temor em relação a Foncebadón. A Viviane contou-me que no livro que lera sobre o Camino, Foncebadón era uma aldeia fantasma. Totalmente desabitada, abandonada e em ruínas, tinha-se tornado a casa de inúmeros cães selvagens, bastante hostis com intrusos, onde se incluíam os peregrinos que tinham que por lá passar. Relatos de peregrinos a serem emboscados em Foncebadón por matilhas de cães raivosos eram frequentes. No entanto, tinham-me dito no Rabanal que Foncebadón tinha pelo menos três albergues. A aldeia tinha sido revitalizada. Ressuscitada.
Quando entrei em Foncebadón reparei imediatamente num albergue com a agitação habitual da manhã no seu interior. Entrei e aceitei o café e "galletas" que ofereciam mediante um donativo de 1€. Encontrei o Francês, que me explicou que Foncebadón já não era mais o pueblo abandonado e temido do passado, apesar da sua população ainda muito reduzida. Os únicos cães "raivosos" que existiam eram os quatro cães pachorrentos do albergue, bastante amistosos. Fumei um cigarro sentado à mesa de madeira no lado de fora do albergue. A manhã estava gelada, de um modo refrescante. Fez-me pensar como seria estar por aqueles lados no Inverno.
Segui caminho. Ainda faltavam uns quilómetros até á Cruz de Ferro. Sempre a subir, atingi-a, um dos pontos relevantes do Camino. Situada num dos pontos mais altos do Camino, encontra-se a "Cruz de Ferro" no topo de um poste de madeira de uns seis metros. Os peregrinos costumam trazer de casa uma pedra simbolizando toda a sua tristeza e angústia, e deixá-la na base da Cruz de Ferro, no imenso monte de pedras deixadas por outros peregrinos. Não são só pedras que são deixadas. No poste de madeira, encontram-se imensos pedaços de história pessoal de peregrinos que por ali passaram. Mas eu não tinha nada para ali deixar. Tinha pensado num acto semelhante, mas apenas faria sentido quando chegasse ao último pedaço de terra antes do oceano. Aí sim, iria atirar para o mais longe possível, para que nunca mais a pudesse ver. Mas não seria uma pedra.
Descansei um pouco na eremita junto à cruz. Existia uma espécie de relógio de sol no chão, junto à Cruz de Ferro, mas o sol estava longe para que alguma sombra incidisse nele. Não percebi muito bem a sua lógica e funcionamento.
Depois da Cruz de Ferro, já quase no topo do monte Irago, encontra-se outra das pérolas do Camino, Manjarín, formado apenas por um único albergue. É a única casa habitada do pueblo. Entrei juntamente com a Julia, depois de lhe ter pedido para me tirar uma foto junto aos sinais de destinos e distâncias na entrada do albergue.
Falámos um pouco enquanto bebíamos café e comíamos as galletas que nos foram dadas após um donativo ao hospitaleiro do albergue há mais de 14 anos, Tomás, o hospitaleiro templário. O albergue de Manjarín, para além da personagem conhecida de Tomás, tem as suas... particularidades. Muitas mesmo! Se soubesse, teria planeado a poder ficar por ali, apesar de não terem duche… entre outras coisas mais.
Perguntei ao Tomás onde era o "servicio", o qual me indicou que era do outro lado da rua. Do outro lado da rua?! Encontrei a casa de banho. Uma estrutura em ruínas, parcialmente de madeira, elevada a uns dois metros do chão, com uma tábua levantada no chão! Acho que a casa dos meus bisavós paternos tinha algo do género. Bem... é uma sensação interessante estar a mijar de pé, com a cabeça a elevar-se por cima da porta de madeira, e a cumprimentar sorridente os peregrinos que passam ao lado na rua, a poucos metros de distância com um "buen camino". Quando mostrei o "WC" à Julia, preferiu aguentar até aos arbustos mais próximos.
Falámos um pouco enquanto bebíamos café e comíamos as galletas que nos foram dadas após um donativo ao hospitaleiro do albergue há mais de 14 anos, Tomás, o hospitaleiro templário. O albergue de Manjarín, para além da personagem conhecida de Tomás, tem as suas... particularidades. Muitas mesmo! Se soubesse, teria planeado a poder ficar por ali, apesar de não terem duche… entre outras coisas mais.
Perguntei ao Tomás onde era o "servicio", o qual me indicou que era do outro lado da rua. Do outro lado da rua?! Encontrei a casa de banho. Uma estrutura em ruínas, parcialmente de madeira, elevada a uns dois metros do chão, com uma tábua levantada no chão! Acho que a casa dos meus bisavós paternos tinha algo do género. Bem... é uma sensação interessante estar a mijar de pé, com a cabeça a elevar-se por cima da porta de madeira, e a cumprimentar sorridente os peregrinos que passam ao lado na rua, a poucos metros de distância com um "buen camino". Quando mostrei o "WC" à Julia, preferiu aguentar até aos arbustos mais próximos.
Segui para El Acebo. A paisagem continuava deslumbrante. O tempo estava formidável. Caminhava sem nenhum esforço. Quando cheguei ao topo, aos 1500 metros, a paisagem era de tirar o fôlego. Lá em baixo, bem longe, ao lado do rio Sil, via-se Ponferrada, o objectivo para a etapa daquele dia. Parei para contemplar a paisagem, sentando-me no chão, enquanto comia uma barra de cereais. Foi quando conheci dois espanhóis, o Fernando e um outro, que apesar de ser o que falava mais, nunca consegui fixar o seu nome. Caminhavam cada um com um saco de plástico, a apanhar todo o lixo que encontravam no chão. Quando chegavam a um pueblo, depositavam os sacos cheios no contentor do lixo mais próximo. Era uma atitude de louvar. Quem caminhava atrás deles, iria encontrar todo o Camino imaculado, limpo do desleixo dos peregrinos sem qualquer noção de bom senso.
El Acebo surgiu lá em baixo. Novamente uma pérola do Camino, sem palavras para descrever. Tão bonito de longe como de perto, com as suas inúmeras casas típicas e ruas pitorescas. Encontrei novamente a Julia à porta de um bar. Parei para comer um bocadillo e beber uma coca-cola e conversei mais um pouco com Julia. Caminhava mais rápido que a Marie e a Angela, gostando da sensação de caminhar a só no Camino.
Continuei a descida para Riego de Ambrós. Novamente um pueblo típico e espectacular. Entrei um pouco no albergue. Não me importava de ficar ali. O Fernando tinha-me dito para não ficar em Ponferrada, pois era um sítio muito "feio" para ficar. Recomendou-me a vila de Molinaseca, mesmo antes de Ponferrada. Depois de um dia daqueles, juntamente com a experiência do dia anterior, certamente não queria ficar numa cidade fria e feia. Iria decidir quando visse Molinaseca.
O caminho até Molinaseca é magnífico, começando logo na saída de Riego de Ambrós, por caminhos de pedra com imensa vegetação, descendo por vezes algumas escarpas. Àquela altitude já não fazia vento e o calor começou novamente a fazer-se sentir. O cheiro da vegetação era incrível, fazendo lembrar um dia de Agosto. Continuei até avistar Molinaseca lá em baixo. Lindo! Nem pensei duas vezes. Era ali que iria ficar.
Logo à entrada de Molinaseca tem que se atravessar o rio Meruelo. Uma ponte medieval dá entrada na vila. Algumas pessoas mergulhavam nas águas convidativas do rio, numa pequena praia fluvial. A vila era realmente típica e linda. É uma pena o albergue ficar do lado de fora da vila, um pouco afastado. O albergue municipal ainda ficava mais afastado, pelo que fiquei num albergue privado, recomendado pelo Fernando. Excelentes condições!
Ao passear pela vila, parei para comer umas tapas numa esplanada. Parecia-me que andava a comer muito, mas não conseguia ter realmente a noção. Os requisitos do corpo no Camino, após uns dias a caminhar, são completamente diferentes dos do dia a dia de trabalho à frente de um PC. Mas, como andava a sentir-me bem, era para continuar. Não queria era tombar novamente por comer pouco demais.
Pedi apenas um copo de vinho, pois aquilo ainda não era o jantar, mas a dona do bar deu-me uma garrafa para a mesa para beber aquilo que quisesse. Momentos depois chegou o austríaco de um só braço. Perguntei-lhe pelos seus dois companheiros de Camino e iniciámos uma conversa à distância de mesas um pouco breve. Quando lhe disse que me lembrava dele de Sahagún por me ter dado o pacote de açúcar no albergue, vi uma transformação que não estava à espera. A cara dele pareceu iluminar-se. Talvez por ver que eu me lembrava dele por algum outro motivo que não a deficiência física evidente. Não sei. Sentou-se na minha mesa e conversámos por longas horas. Partira da Áustria há 90 dias atrás. Já tinha feito o caminho de Roncesvalles a Santiago no ano passado, e este ano decidira partir literalmente da porta da sua casa. Falou-me da beleza dos Massives Centrales em França, em como eram parecidos com o percurso daquele dia. Um pouco depois chegou o Suíço de barba. Também partira da porta de sua casa rumo a Santiago. Conheceram-se os dois no caminho há três meses atrás. Em León tinham decidido separarem-se porque já caminhavam juntos há demasiado tempo, mas estavam sempre a encontrar-se. Naquele dia iam continuar até Ponferrada.
Depois de mais uma volta pela vila, lembrei-me de perguntar no albergue pelo jantar, pois tinha visto que tinham um restaurante no albergue. Era necessária reserva, e estas tinham fechado há uns minutos atrás. Albergues privados... Uma austríaca estava na mesma posição do que eu. Fomos os dois jantar à vila, e foi o melhor que fizemos, pois pagámos apenas mais cinquenta cêntimos por uma refeição completa magnífica, num restaurante. A mulher vinha do Tirol, na Áustria, região que durante o ano passa por seis meses de verão e seis meses de Inverno.
Depois do jantar ainda tive um pouco no albergue. Parece que nos privados não existe tanto convívio como nos municipais. Ainda estive a falar com um espanhol de Múrcia que se sentou no meu banco no pátio a fumar um "porro", como se diz em Espanha. Era normal entre os Espanhóis. De facto, por algumas das vezes que enrolava um cigarro, muitos me perguntavam "¿Qué estás haciendo? Un porro?". Nessa noite reparara em várias pessoas a coxear. A descida acentuada tinha feito as suas vítimas, tal como a descida dos Pirinéus me fez a mim. Também cheguei a temer a descida, mas já sabia como ser mais cauteloso. O espanhol de Múrcia tinha o seu joelho todo ligado e mal conseguia andar. Perguntei-lhe de onde tinha começado o Camino, o qual me respondeu "León". Estava explicado. Muitos dos que ali estavam só começaram em León, não estando ainda imunes devido ao Camino antes de León. Voltaria apenas a encontrar esse espanhol na estação de comboios de Santiago de Compostela, já depois de ter ido a Finisterra. Devido aos problemas no joelho, chegara a Compostela três dias depois de mim.
Também conheci um Australiano chamado Jeff. Apenas falei com Jeff durante uns minutos. É incrível como nos lembramos de alguns nomes, e outros, de peregrinos que falamos várias vezes ao dia, por vários dias, nem os conseguimos reter. Admirei bastante o Jeff, talvez devido à sua determinação e força perante as imensas dificuldades com que fazia o Camino. Não tive coragem de perguntar qual a desordem ou doença de que sofria. Nem sequer foi motivo de conversa. Mas era evidente, devido ao seu corpo estar constantemente a abanar.
No dia seguinte teria que recuperar a distância até Ponferrada e ainda chegar a Villafranca del Bierzo, o que colocava a etapa em 30km. Não era muito para a resistência que já tinha ganho, mas a maioria não queria arriscar ir tão longe e iriam ficar em Cacabelos, uns 8km atrás.