quarta-feira, 30 de janeiro de 2008

Dia 31: Monte do Gozo - Santiago de Compostela

Acordei às 6:00. Não tinha sono. Estava ansioso. Era cedo demais para entrar em Santiago, mas não conseguia dormir mais. Tomei o pequeno-almoço à porta do edifício onde dormi, falando com quem aparecia. Surgiu o Walter, o brasileiro que partilhara o meu primeiro quarto no dia anterior. De modo a levar a sua bicicleta no avião de volta para o Brasil, empacotara-a numa enorme caixa. Apareceu à porta do edifício a arfar, tentando carregar a enorme caixa e a mochila de duas bolsas, comum a todos os peregrinos de bicicleta, com os seus 20kg. A paragem de autocarros para o aeroporto situa-se na outra ponta de San Marcos. Inicialmente ofereci-me para lhe levar a mochila apenas até ao topo da rampa do albergue. Mas era mesmo pesada! Acompanhei-o até à paragem de autocarros. O Walter, com medo que não fosse até ao fim, ainda fez a chantagem psicológica "Que bom! Ainda continua com o espírito do Caminho. A Ajudar os outros.". Não era necessário. Não o ia deixar enrascado. Suei logo pela manhã. Foi a única vez nesse dia, para variar.

Passei uma última vez pelo monumento ao peregrino

Quando regressei ao Monte do Gozo, o céu já estava violeta. Estava a amanhecer. Hora de partir. Finalmente Santiago. Alguns peregrinos estavam no bar da Ciudad de Vacaciones. O Andrew dirigiu-se para lá para comer algo. Mas não era isso que eu queria. Queria tomar o pequeno-almoço no centro de Santiago. Desci o Monte do Gozo, passando por todo o enorme complexo da Ciudad de Vacaciones. Foi quando me apercebi que estava praticamente colado a Santiago. No topo da última colina, esperei que o céu clareasse um pouco mais.

Amanhecer às portas de Santiago

Uma placa do lado esquerdo da estrada por onde seguia, indicava o facto, tinha chegado a Santiago de Compostela. Vi novamente um marco com a distância. Deixara de os ver no quilómetro 11. Estava a 2km da catedral, o quilómetro zero do Caminho Francês. Percorri lentamente, sem pressa, a parte nova da cidade. Era como que um passeio, diferente de todos os outros dias no Camino.

Entrada em Santiago de Compostela

Encontrei uma tabuleta para o segundo e último albergue de peregrinos em Santiago, o albergue Acuário. Àquela hora provavelmente encontraria lugar. Mas deixar já ali a mochila e entrar tão cedo num albergue não me parecia bem. Queria fazer todo o caminho até à catedral com a mochila. Não me libertar daquele peso que contribuía para a condição de peregrino, pelo menos para a minha. No fundo, também queria ficar hospedado no centro da cidade. Continuei.

Segui as setas amarelas escondidas pela cidade, provavelmente despercebidas para um qualquer turista. Passado um pouco, um grupo de peregrinos que seguia a alguns metros à minha frente, após falar com uma mulher espanhola, começou a caminhar para trás, quando uma seta amarela apontava claramente para a frente, na direcção para onde ia. Perguntei à mulher se o caminho não era por ali. "Si, lo camino Francês és por aqui, mas no pasa por la catedral". Ridículo! Nunca cheguei a saber se o Caminho que seguia passava pela catedral. Acho muito estranho não passar. Mas o que é certo, é que o caminho que me indicou, ao fim de 15 minutos, foi dar à Catedral. Minutos antes, conseguira ver pela primeira vez as suas torres à distância.

Torres da catedral à distância

A entrar na parte velha da cidade

A caminho da catedral

Santiago de Compostela

Quase lá!

Chegara finalmente à catedral! Estava na praça do Obradoiro. Tinha feito o Caminho de Santiago a pé. Cada centímetro dele. Passo a passo. Só dias mais tarde é que digeri esse facto. Porque na realidade o meu destino sempre fora Finisterra. Santiago de Compostela era uma meta importante, contudo, era uma das muitas etapas intermediárias. Mas não deixava de ter uma mística enorme. Estava em Santiago! Tinha feito o Camino!

Ainda o sol não se elevara por completo. À sombra da catedral.

Fiquei algum tempo na praça. Sabia que não iria encontrar as caras que queria ver, os companheiros do Camino, mas tinha uma réstia de esperança que alguns surgissem. Sempre que encontrava alguém que conhecera nos últimos dias, as palavras de ordem eram sempre "congratulations", "congratulationes", "congratulacion", "felicitazione", as palavras perdia-me nas várias línguas, mas o intuito era sempre o mesmo. A troca de abraços, os apertos de mão, os beijos na face. Por vezes encontrava algum peregrino que me acompanhava por mais de uma semana. Os laços eram mais profundos com eles. O reencontro mais caloroso. O Miro! Estava lá! O Miro acompanhava-me desde o meu segundo dia. Recordou-me, com emoção, quando me viu a descer umas escadas cravadas na terra, no meu terceiro dia, à saída de Zubiri, quase sem conseguir dobrar os joelhos, sob imensas dores, demorando quase 15 minutos para o fazer. O Miro é muito expressivo nas suas descrições, e fazia sempre uma careta com a língua de fora no canto da boca quando me imitava a descer escadas com as dores nos joelhos. E ali estávamos os dois, sob a sombra da catedral.

Tomei o pequeno-almoço num dos cafés junto à catedral, juntamente com a Jasmine, um alemão e uma sul-coreana que nunca me lembrava dos nomes. Já eram 11:00 e cada vez víamos mais peregrinos sem mochilas. Decidimos começar a procurar por quartos para alugar. Vimos um que era bastante em conta, 12€ por pessoa. Um quarto com 4 camas, mas com condições péssimas. Noutra pediam 75€ por quarto, num hotel de duas estrelas. O quarto era espectacular. A Jasmine ficou por lá. Tinha recebido a notícia de que iria trabalhar para uma nova empresa, com um substancial aumento de ordenado, e não se importava de comemorar assim com aquela "extravagância". Eu e os outros não queríamos dar tanto dinheiro. Separámo-nos.

Ao percorrer as ruas de Compostela, uma pessoa surgiu a correr de dentro de um café e chamou-me. Era a Francesca! A minha primeira companheira de Caminho, embora por um curto espaço de tempo. As duas italianas estavam ali! A Francesca e a Lucia, a peregrina que caminhava lentamente sem pausas nos primeiros dias. Tinham chegado há dois dias atrás. Deixara de as ver há imenso tempo atrás. Foi muito bom revê-las. Iam-se embora no dia seguinte.

Ao caminhar para o local onde as italianas me indicaram estarem hospedadas, encontrei um quarto duplo por 35€, a poucos metros da catedral. Tinha casa de banho privada, e até TV. Um luxo para um peregrino depois de 31 dias a dormir em albergues. Agarrei logo o quarto, mesmo estando só. Pousei rapidamente a mochila e dirigi-me novamente para a catedral. Era o ponto de encontro de todos, e eram quase 12:00, que embora não católico, não queria perder a famosa missa. Novamente, imensos peregrinos conhecidos.

Vista da janela do quarto

Entrei na catedral, já cheia. Imensa gente de pé. O bispo celebrava a missa. Imensos padres, todos de vermelho, exibindo a cruz de Santiago. Dei uma volta pela catedral. Vi o túmulo do apóstolo. Entrei numa fila para umas escadas que subiam, sem saber para o que era. Cheguei a um pequeno espaço, por trás da figura de Santiago, de modo a que se possa cumprir uma das tradições na catedral. Um padre encontrava-se sentado em frente à estátua. Conseguia ver toda a catedral para lá da figura. Abracei a estátua com sinceridade. Para cumprir uma promessa que fizera a alguém, agradeci a Santiago pelo que me tinha sido pedido, em nome dessa pessoa. Esperei a missa toda que o botafumeiro começasse a balançar, mas tal só sucedia nos anos Jacobeos.

Missa na catedral

Já fora da catedral, encontrei a Ema. Despedimo-nos, sem qualquer esperança em voltarmo-nos a ver. O Miro perguntou-me se ia almoçar. Já estava com fome. "Vamos ao melhor sítio de Santiago! Casa Manolo.". Fomos os dois. Parámos primeiro num bar para uma caña com tapas. O Miro resolveu convidar as italianas para almoçar. Tinha o número de telefone de todas as peregrinas do Camino! Incrível. Recebeu um SMS de resposta. Não iam almoçar agora. Seguimos para o restaurante Casa Manolo. Realmente os pratos são enormes. Quase nem comi metade do segundo prato, um "churrasco". No final, Miro foi dormir uma "siesta". Fui dar mais uma volta.

Ruas de Santiago de Compostela

Os peregrinos que tinham ficado na Arca do Pino deveriam estar a chegar. Queria ver a Marie e a Gaeli de novo. E lá estavam elas em frente à catedral, cansadas e um pouco perdidas, sem sítio para dormir. Depois de falar com imensos peregrinos, conhecia praticamente as localizações de todas as pensões das redondezas. A minha pensão já estava lotada. Ajudei-as a arranjar um quarto duplo, por 30€, um pouco mais abaixo na mesma rua onde ficara hospedado. Mais barato que o meu! Ainda iam tomar banho, pelo que combinámos encontrar às 17:00 em frente à catedral. Depois de mais uma volta pela parte histórica de Santiago, fui ao encontro delas.

A catedral, agora com mais luz

Era bom estar com as duas, uma companhia familiar do Camino. O sentido de humor da Marie era terrível, e era impossível não estar de bom humor por perto dela. Queriam ver a catedral, e entrei novamente. Foi quando encontrei o Denis! Novamente alguém que conhecera no início do Camino, em Saint Jean Pied-de-Port. Tinha-o deixado de ver à saída de Burgos, onde me dissera que apanhara uma constipação na noite anterior. Nesse dia tinha voltado para trás, para Burgos, devido à constipação, tendo parado por um dia. Mas recuperara nos dias seguintes, andando sempre 30km por dia. Chegara a Santiago nessa tarde.

Foi a Gaeli que reparou "Que assustador, um olho a olhar lá de cima". Um olho dentro de um triângulo. Um símbolo Illuminati! Ali?!

Continuei a tarde e a noite toda com a Marie e a Gaeli. Penso que não falhámos nem uma rua de Santiago!

A rua mais estreita de Santiago?

Parámos para jantar umas tapas. Acompanhei com cañas, elas com "speciz" ou "spetzi", não me recordo como chamam à bebida na Alemanha, muito popular por lá. No fundo trata-se de uma mistura de Coca-Cola com Fanta laranja. Por volta das 22:00, para meu alívio, encontrámos um Cyber-Café. Já só tinha espaço no cartão de memória da máquina fotográfica para mais 30 fotos. Tinha que descarregar fotos para a pen. Elas aproveitaram e entraram na net. Quando terminei, disseram-me para esperar só mais uns 10 minutos. Fui dar uma volta. Reencontrei a Gordana! Falámos um pouco. Olhei para o relógio. Detestava as despedidas no Camino. No dia seguinte a Marie e a Gaeli iriam de autocarro para Finisterra para se reencontrarem com a Julia. Fiz algo que normalmente nunca faria. Regressei para a pensão. Nunca mais as vi.

Anoitecer em Santiago

Estava cansado e o dia seguinte iria ser mais um dia no Camino. No entanto, estava já no Caminho de Finisterra. Tinha acabado o Caminho Francês. Sentia que iria ser diferente, em todos os aspectos. Não sabia bem porquê.

sábado, 26 de janeiro de 2008

Dia 30: Ribadiso - Monte do Gozo

Acordei novamente cedo, às 6:00. Já estava no meu horário biológico. Já não conseguia acordar a outra hora. A Marie e a Gaeli estavam acordadas e sorrimos a desejar o bom dia típico. Não sei porque decidi não esperar por elas. Queria caminhar só novamente. Não sabia bem porquê, mas decidi não pensar muito no assunto. Apenas caminhar.

Neblina matinal. Lindo!

Em Arzúa tomei o pequeno-almoço num café. Foi aí a última vez que vi o Diego. Sem saber ainda, nesse dia, iria ser a última vez que iria deixar de ver praticamente todos os peregrinos até então do Camino.

Arzúa. Fiquei fascinado por caminhar na neblina.

Não estava nevoeiro, mas sim uma névoa rasteira ao chão. Foi a primeira vez que a apanhei no Camino e fiquei fascinado pelo efeito.

A caminho de Calle

Parei novamente em Calle para um bocadillo. Enorme! Ficaram todos surpreendidos com o tamanho. Que exagero!

Bocadillo gigante

Para minha satisfação, a neblina demorou a desaparecer.

Caminhava muito rápido, sem qualquer dificuldade. Sentia a velocidade. Passava velozmente por todos sem qualquer esforço. Mesmo com sol. Estava a adorar a sensação.

Já tinha dito que adorei a neblina?

Camino

Calle

Parei em Cerceda para uma Coca-Cola. Continuei rapidamente. Passei por Santa Irene, o local que a Julia tinha falado. Era realmente um deserto. Vi que existiam dois albergues, e mais nada. Nem mais um edifício. No entanto, uma placa indicava 300 metros para o centro do pueblo. Não passei por lá.

Cheguei a Arca, ou melhor, vi a Arca do Pino à distância. O Camino não passa pelo pueblo como indicado pelo meu guia. Apenas passa por um pavilhão desportivo, ou algo do género, e por um café. Teria que sair do Camino para chegar a Arca do Pino. A ideia não me agradou. Bebi uma Coca-Cola e revi umas 20 vezes o mapa da etapa do dia seguinte "Arca do Pino - Santiago de Compostela". Os que passavam por mim, poucos, iam para o Monte do Gozo, e todos me diziam que não lhes agradava a ideia de ficarem ali, tendo que no dia seguinte caminhar muitos quilómetros, perdendo a manhã em Santiago de Compostela. Também não me agradava essa ideia de chegar tarde a Santiago. E não me agradava perder novamente todas as caras conhecidas que iriam ficar em Arca. Mas parecia-me a coisa certa a fazer. Comecei a caminhar. Iria apontar o destino até ao Monte do Gozo. Iria fazer novamente 40km num dia. Também não queria ficar com o estigma dos 40km. Fisicamente sentia-me apto para os fazer, e para ir além deles.

A caminho do Monte do Gozo

A subida a pique de 150m, um pouco depois da Arca, abrandou-me um pouco. Passei ao lado do aeroporto, mas não se conseguia vê-lo. Um avião passou mesmo por cima de mim. Estava tão perto. Passei por Andrew, o Australiano. O molho de folhas de Eucalipto penduradas na sua mochila denunciavam-no sempre. Continuava a coxear, com imensas dores, agora também a tomar Voltarem. Tinha ficado em Arzúa e iria também para o Monte do Gozo. Mas ia lento demais. Despedi-me e continuei com o meu passo.

Em San Paio, parei para uma excelente "tortilha de patatas" com tomate e uma cerveja. Conheci o casal de alemães com a sua filha. Tinham começado em Sarria, numa distância suficiente para que pudessem fazer 100km a pé até Santiago, o mínimo exigido para que seja uma "peregrinação a sério". Sucedeu algo que considerei terrível na altura. Estava na mesa deles a conversar e o homem alemão fez um gesto de que estava com dores nas pernas. Sem dar por isso, saiu-me "I've been walking for 30 days, and I still have pain", mas num tom monocórdico, absolutamente sem expressão, sem ênfase, sem qualquer emoção na voz ou no corpo, exactamente igual ao tipo que vinha a caminhar desde Oslo sem dinheiro, o qual notei algo de estranho nele. Era aquilo o que notei de estranho. Tinha acabado de fazer exactamente o mesmo. Detestei. Porquê? Seria aquele o destino para onde caminhava? Para ver as coisas do caminho com uma naturalidade tão grande que no fundo só sobrasse a indiferença? Nunca. Nunca mesmo. Jurei a mim próprio que nunca ficaria assim. Nem com o Camino, nem com nada. E foi a primeira e a última vez que tal sucedeu.

Os alemães disseram-me que faltavam 6km até ao Monte do Gozo. Na realidade, tinham-se enganado, e faltavam 15km! Quase o dobro. É horrível quando caminhamos uma distância muito maior do que ela é na nossa mente. Custa imenso! Principalmente no final de 40km.

Não sabia o que iria encontrar no Monte do Gozo. O meu guia, como já vinha a ser hábito nas últimas etapas, não entrava em detalhe nenhum. Nem sequer mostrava o tamanho dele no mapa. O meu receio era de que o albergue já tivesse lotado. Quase todos os peregrinos ficavam no Monte do Gozo, no penúltimo dia para Santiago. No entanto, ansiava por ver Santiago à distância. Era o primeiro local de onde os antigos peregrinos conseguiam ver as torres da catedral á distância.

Monte do Gozo

Tinha chegado a Monte do Gozo, exausto. Perguntei a duas peregrinas sem saber de onde eram, com a palavra universal "albergue?". "Three more minutes, straight ahead". Vi o enorme monumento no monte com as duas figuras de peregrinos viradas para Oeste. Olhei também. De início a copa de árvores tapava-me a vista para o horizonte. Mas à medida que caminhava, Santiago surgia aos poucos á minha frente. Tão perto. Podia lá chegar em menos de uma hora.

Monumento ao peregrino

O albergue situava-se mais abaixo, num enorme complexo intitulado de "Ciudad de Vacaciones". Um pouco estranho. Como um coreano me disse no dia seguinte, explicando a razão por não ter ali ficado "a little too modern". Vi numa placa a indicação de 170 camas. O albergue era enorme e apenas ocupava uma pequena parte do complexo.

Ciudad de Vacaciones

Contudo, apenas uns 30 peregrinos se encontravam ali. Apenas conhecia uns 8 peregrinos. O David, o TGV. Um grupo de 3 espanhóis que caminhavam juntos desde Estella. A Jasmine, a croata alemã. Uma sul-coreana e um alemão. O Andrew chegou horas mais tarde, a coxear. Tinha conseguido!

Um substituto do hospitaleiro fez o meu registo. Fiquei num edifício um pouco velho. Os colchões já tinham visto dias melhores. Conheci o meu companheiro de quarto, Walter, um brasileiro. Tinha feito o Camino de bicicleta e iria regressar no dia seguinte para o Brasil.

Ciudad de vacaciones

Mais tarde chegou Manuel, o hospitaleiro. Uma figura. Um tipo de cabelos pretos encaracoladas, que fala e fala e fala e... fala imenso! Mas extremamente simpático. Disse-me para mudar para o edifico novo, pois era muito melhor. De facto, foi como mudar-me para um hotel. Fiquei num quarto apenas com o Andrew. Tudo novo e a cheirar bem. Almofadas! O edifício velho não tinha almofadas.

Sentei-me numas escadas a ver o pôr-do-sol por trás de Santiago. Foi um dos melhores pôr-do-sol de sempre. Existia uma tranquilidade no ar, partilhada por todos os peregrinos. Conseguíamos mesmo senti-la. Uma serenidade incrível. Todos olhavam para Santiago, na direcção do sol. Estava ali o final do Camino para muitos. Foi belo.

Pôr-do-Sol com Santiago no horizonte

Fui jantar ao self-service da Ciudad de Vacaciones com o Andrew. Conversámos um pouco. Contou-me as suas razões para fazer o Camino, e bastante sobre o modo de vida na Austrália.

No final do jantar chegou Bernard. Tinha acabado o Camino no dia anterior. Tal como muitos peregrinos que chegavam à noite, todos diziam que não havia lugar em Santiago. O albergue maior tinha fechado no final de Setembro, e nenhum deles conseguira lugar em hotel ou pensão. Bernard não largara a sua excentricidade. Tinha deixado a sua "bicicleta" em frente à esquadra do polícia para a guardarem, e caminhava com uma mochila, mas... com dois sacos pendurados à frente, nas alças, junto ao peito. Airbags para o caso de cair, como lhe sucedeu no Camino anterior. Algures durante o Camino, tivera a brilhante ideia de pedir "donativo" por cada foto que lhe tiravam. Pedia 1€. Fizera mais de 50€ em poucos dias. Como a Marie disse quando lhe contei "pilgrims buy any shit". De facto, turigrinos. Despedi-me de Bernard. Iria voltar para a Bélgica no dia seguinte.

Conheci uma jovem alemã e um Japonês que fizeram a Via de la Plata. Muito dura, pelas descrições deles. As distâncias entre pueblos chegavam por vezes aos 30km, sem nada entre elas.

Deitei-me às 22:00. Estava exausto. No dia seguinte estaria em Santiago.

quarta-feira, 23 de janeiro de 2008

Dia 29: Palas de Rei - Ribadiso

Apesar de ter imensas dificuldades em adormecer nas inúmeras vezes que acordava de noite, levantei-me às 7:00. Penso que saí às 7:40. No dia anterior não tinha comprado nada para comer no Camino. Era domingo e apenas uma pastelaria estava aberta. Parei no albergue de San Xulián para um café solo.

Milheiro típico da Galiza. Muitos, muitos, mesmo muitos espalhados por toda a Galiza.

Muitos peregrinos tinham preferido ficar ali. Foi quando conheci Andrew, um australiano, ao lhe interpretar Inglês para Espanhol. Andrew estava com bastantes dores num tendão no pé. Já andava assim há alguns dias, e receava que tivesse rompido o tendão. Traduzi o pedido dele para o hospitaleiro, e conseguiu boleia juntamente com as mochilas de alguns peregrinos até Ribadiso.

Saída de San Xulián

Segui até Leboreiro onde tomei o pequeno-almoço. Um bocadillo gigante de queijo fresco! Aquilo era mesmo exagerado. A Marie e a Angela chegaram pouco depois e sentaram-se na minha mesa. Caminhámos juntos até Ribadiso. Já me tinha esquecido de quanto diferente era caminhar acompanhado em toda a etapa, e não apenas em troços da etapa. Falámos durante todo o tempo, praticamente sem pausas. Havia muito para falar. Durante todo o Camino, senti uma dificuldade imensa em estabelecer alguma espécie de contacto caloroso com os peregrinos alemães. Com a Marie, Angela e Julia sucedeu o mesmo. Demorou dias para quebrar aquela barreira invisível que existia sempre no meio.

Camino

Camino

Quando chegámos a Melide, a Julia telefonou-lhes. Pela descrição da Julia, muito entusiasmada, a dizer que estava a ver Santiago ao longe, deduzi que estivesse no Monte do Gozo. Estava às portas de Santiago.

Vista de Melide da ponte

A caminho de Ribadiso. Peregrinos espanhóis de bicicleta. De dia para dia era cada vez mais raro encontrar peregrinos de bicicleta.

Sempre a conversar, o Camino é bastante diferente. Agora podia ver bem a diferença. O tempo passou num instante. Parece que não me cansei tanto. Naquele dia senti que já podia deixar de caminhar a só. Quase como sentir que o Camino já não me iria dar mais nada por o fazer a só. Já tinha conseguido bastante.

Sem dar por isso, estava em Ribadiso. Não existe ali um pueblo chamado Ribadiso. De facto, existem três Ribadisos. Ribadiso de Baixo, Ribadiso de Riba e Ribadiso de Carretera. O albergue fica no primeiro, em Ribadiso de Baixo. E que albergue! É realmente magnífico. Um dos melhores de todo o Camino, senão o melhor.

Marie a atravessar a ponte com vista para um dos edifícios do albergue de Ribadiso

Um riacho atravessa o albergue, criando uma pequena praia fluvial. O Miro finalmente apanhou-me novamente. Já não o via desde Ledigos, na etapa de Sahagún, há muitos dias atrás. Fiquei muito contente por o ter reencontrado. Teve a honra de inaugurar o dia balnear... logo a seguir às vacas.

Miro prepara-se para o mergulho sob o olhar divertido da Marie e Angela

Estava calor, e até era tentador, mas... acho que não o suficiente.

Muuuu, para o delírio da perra peregrina Bierke

Muuuu, muuuuu, muuuu e muuuu. Ah, e mais muuuu. De onde é que elas apareceram?! Sozinhas!

As construções das casas eram de pedra. O albergue fora outrora o antigo hospital de peregrinos de Ribadiso, agora totalmente recuperado desde as suas fundições, para ser o albergue municipal.

Entrada do albergue de Ribadiso

Houve uma imensa confusão inicialmente. O hospitaleiro tinha saído, e o Espanhol estava a desenrascar os registos. Não tardou muito para se acumularem cerca de 20 peregrinos sem cama para dormir. No entanto, havia ainda camas numa outra casa por abrir. Fui o tradutor oficial para aquela gente toda. Pelos vistos, era o único que ali estava que falava Inglês e percebia Castelhano.

A Ema chegou tarde e já não conseguiu lugar no albergue. Ficou em Arzúa, uns 4 km à frente, mas à noite voltou de táxi para jantar no restaurante ao lado do albergue. Mesmo ao lado, pegado ao albergue.

Bar e restaurante ao lado do albergue

O Diego também estava por lá, com o seu grupo já enorme de sul-coreanos, juntamente com o seu companheiro inseparável de Camino, o Espanhol. No dia seguinte iriam ficar em Santa Irene. Avisei-os sobre o sítio, pois a Julia tinha telefonado à Marie a contar de um albergue sem nada à volta, em que tinha chegado tarde e cansada, e se não fosse um peregrino a ir ao pueblo mais próximo comprar-lhe algo para comer, tinha jantado chocolate! Mas... o Diego disse-me que a Flor não gostava de andar muito. É uma das particularidades de fazer o Camino em grupo. Lembrou-me de Hornillos del Camino.

Vista para os balneáreos do albergue. À direita, movimento típico de dor nos joelhos de um peregrino a levantar-se de uma cadeira.

Jantei com a Marie e a Angela, e ainda ficámos na conversa com a Gordana e uma australiana de faces muito rosadas que nunca me lembrava do nome.

Estava a dois dias de Santiago de Compostela. Mas no fundo, não sentia por Compostela o que os outros sentiam. Para os restantes era mais do que um objectivo. Era a meta a atingir, e o final do Camino. Não havia nada mais para além de Santiago. Para mim, ainda havia uma imensidão de caminho, até ao oceano, até Finisterra. Aí sim, seria o meu objectivo final, o final do meu Camino. Para além de Finisterra não existia nada mais. Autenticamente o meu Fim da Terra.

domingo, 20 de janeiro de 2008

Dia 28: Portomarín - Palas de Rei

Acordei às 6:45. Tarde! Dormi tanto. Mesmo assim, consegui sair do albergue às 7:30. Cedo demais. Ainda era noite. Raios. Tinha que acertar com os horários. Queria atravessar a passadeira sobre o "embalse" de Belesar com alguma luz para desfrutar do local. Não deixou de ser formidável ainda de noite. O dia nasceu novamente cinzento, ameaçando chover.

Amanhecer cinzento

Parei em Gonzar para o pequeno-almoço. O segundo, como sempre. Quando terminei, começou a chover. Apanhei chuva durante uma boa parte do caminho. Chovia torrencialmente. Abrigava-me debaixo das árvores quando a chuva caía com mais violência. Por vezes não era possível. Penso que foi em Ventas de Narón que tive que parar num café. As minhas calças estavam completamente encharcadas. A t-shirt também. Temi pela máquina fotográfica, mas felizmente o interior da bolsa parecia ser impermeável. O exterior estava completamente encharcado. Conheci no café a Jasmine. Nunca a tinha visto no caminho, nem ela a mim. Jasmine partira do Camino Aragonês, de Somport. O caminho junta-se ao Francês em Puente la Reina. Desde aí que andávamos sempre par a par, mas nunca nos tínhamos encontrado. Jasmine era Alemã, mas os pais eram croatas, pelo que o seu nome era Croata. A chuva não abrandava. Segui mesmo assim.


Durante a chuva só arrisquei esta foto, e mesmo assim a máquina apanhou água. O peregrino disse-me "Uau! Thank you". Ah... ah... :D

A chegar a Os Lameiros, finalmente parou de chover. Via-se o céu azul à distância, a Oeste. O sol brilhou novamente ao fim de dois dias. Seria o meu último dia de chuva no Camino. Parei em Ligonde para descansar um pouco com uma Coca-Cola.

Dentro da Galiza, o Camino é sinalizado por marcos, praticamente de quilómetro a quilómetro, com a indicação de quantos quilómetros faltam até Santiago de Compostela. Havia alguma discussão sobre se haveria o marco do quilómetro 69 ou não. Bem... aqui está ele. Um pouco vandalizado e tal, mas está lá. Curiosamente é o único marco do camino vandalizado.

Depois de passar por Brea, vi dois peregrinos espanhóis sentados nos degraus de um edifício novo fora da estrada. Na fachada do edifício podia-se ler "Albergue Municipal". Estaria já em Palas de Rei?! Mas... ali não havia quase nada. Onde estava a vila de Palas? Mais à frente vi um albergue privado onde estavam duas peregrinas brasileiras. Elas confirmaram-me que estava mesmo em Palas de Rei. Mas ali não iria ficar. Juntamente com um alemão, continuámos em frente.

Brea

A cerca de 1 km ou mais, encontrámos a vila. Havia mais um albergue municipal, mesmo no centro. Eu e o alemão, falhámos por completo o albergue. Perguntei a duas alemãs onde era o albergue e guiaram-me 1 km para fora de Palas de Rei. Raios. Perguntei a um habitante local onde era o albergue, e em vez de me indicar onde era, foi comigo e com o alemão levar-nos à porta!

Camino

Depois do duche e de comer algo, a tradicional volta pela vila. Foi uma grande surpresa ter encontrado novamente o David, o TGV! Já não o via há imensos dias. Continuava em grande forma, como sempre. Disse-me que encontrara a Viviane bastante atrás no Camino, e que caminhava agora na companhia de outro brasileiro. Pelos vistos a Viviane continuava com algumas dificuldades.

Fui beber um copo de vinho numa esplanada enquanto esperava para usar a Internet. Quando ficou livre, encontrei junto ao teclado uma carteira. Continha dois cartões de crédito e cerca de 200€ em dinheiro. Aquilo deveria ser o pesadelo de qualquer peregrino, perder a carteira. Perguntei a todos de quem era. Vi o nome num dos cartões, Michelle. O grupo de Belgas disse-me que o homem estava com eles no quarto do albergue privado, pelo que lhes dei a carteira. Mais tarde Michelle agradeceu-me profundamente por a ter encontrado e devolvido. Era a segunda vez nesse dia. Horas antes, em Gonzar, encontrara uma máquina fotográfica no WC do café. Mantive-a comigo, perguntando de quem era, até ver uma peregrina alemã a correr apressadamente para trás no Camino.

Palas de Rei

Quando passeava mais um pouco pela vila, um coreano meteu conversa comigo. Já desde Sarria que o encontrava. Ainda falámos um pouco sobre diversas coisas. Estava bastante curioso porque encontrava tantos coreanos no Camino e perguntei-lhe. Disse-me que desde que partira de Saint Jean Pied-de-Port, já tinha encontrado 18 coreanos. Nesse momento apareceu um segundo coreano. Fizeram uma vénia, apertaram mãos, e trocaram algumas palavras em Coreano até o segundo coreano ir-se embora. Nisto, vira-se para mim e diz "19". Mas eram tantos porquê?! Ele tinha encontrado 19 Coreanos, e eu, ainda nem um Português, com o país ali mesmo ao lado. Ele perguntou-me se eu conhecia o livro do Paulo Coelho... ok, não foi preciso mais explicações. Pelos vistos O Diário de um Mago era bastante conhecido na Coreia do Sul, e o Paulo Coelho bastante célebre por lá. O segundo coreano regressou momentos depois com três gelados na mão. Ofereceu-me um. Depois do vinho, devo dizer que não era o que mais me apetecia, e caiu-me um pouco mal, mas não podia recusar.

Encontrei novamente a Ema. Arrastou-me para uma esplanada para beber algo. Estava com uma venezuelana que trabalhava em Barcelona. No caminho para a esplanada falaram com um homem já de idade, com enormes óculos circulares. As suas mãos estavam cobertas aqui e ali com tinta amarela. Não era um amarelo qualquer. Reconheci-o logo. Era um dos muito voluntário que ajudavam a manter o Camino. Desde há muitos anos que ajudava a manter as setas amarelas naquela parte do Camino. Pelos vistos era uma personagem algo famosa, pois aparecera num documentário alemão sobre o Camino, e muitos o reconheciam. A Venezuelana mostrou-me orgulhosa a foto que tirara algumas horas antes, a pintar uma seta amarela.

Fui jantar já tarde, às 20:00, tendo quase que abandonar a mesa da Ema à força, pois para ela jantar àquela hora era de "horários estrangeiros". Jantei no restaurante ao lado do albergue. Magnífica refeição! Conheci a Gordana, uma peregrina finlandesa com um sotaque Inglês perfeito! Estivemos umas duas horas na conversa. Perguntei-lhe curioso, como conseguira ela aquele sotaque, quando me respondeu que o fez para mudar, pois anteriormente tinha um sotaque americano perfeito, mas não gostava de soar a americana. Raios... quem me dera a mim poder mudar assim o sotaque Inglês. O meu era... bem, não falo mal Inglês, e os ingleses no camino faziam subir sempre o meu ego ao elogiar o meu bom inglês, mas tinha sempre aquele sotaque Português lá no meio.

Deitei-me quase às 23:00. Os albergues na Galiza não tinham horários rigorosos. Tinham apenas o do silêncio. No entanto, todos os albergues eram mantidos por funcionários municipais, pagos, e não por voluntários. Todos funcionavam na base do donativo e nunca num preço fixo. Também quase nenhum deles tinha Internet. De dia para dia, sentia cada vez menor a distância para Santiago. Estava quase ali, ao virar da esquina.