sábado, 13 de outubro de 2007

Dia 3: Zubiri - Pamplona

Depois de ver os mapas, vi que a inclinação do percurso não era muito acentuada. Talvez conseguisse chegar até Larrasoaña e ainda fazer o Camino até Pamplona. Os joelhos ainda doíam. Não conseguia dizer se menos ou com a mesma intensidade do dia anterior. Não podia parar. Não sabia se iria conseguir andar 6km sequer. Mas parar seria um grande golpe psicológico para mim. Aguentava com a dor. Como um escocês me disse "Pain?! Oh we can handle that". Haviam coisas piores. Ser obrigado a parar ou até mesmo a desistir era uma delas.

Cada descida era um enorme desafio. Numa dessas descidas, formada por uma escada de terra batida e tábuas de madeira, em que demorei 15 minutos a descer, com muito custo e aparente dificuldade, conheci Miro Villamor, um espanhol de Zamora, de cabelos encaracolados despenteados e barba branca que mostravam os seus 61 anos, voz grossa e profunda, sempre bem disposto, enorme com os seus 120 quilos e calçando botas de tamanho 49. Miro disse-me para contar 3 dias. Ao 3º dia, já não teria aquelas dores. Garantiu-me por experiência própria. Muita experiência, sublinhou. Na altura não sabia nada sobre Miro, de quem me viria a despedir em Finisterra com um enorme abraço. De facto, Miro já fizera o Camino 9 vezes. Aquele era o seu 10º Camino. Era, o que espanhóis chamavam, um "trovador del Camino". Sempre acompanhado pelas suas duas canas, os seus instrumentos musicais inseparáveis presos ao seu bastão, deliciava todos os peregrinos e espectadores incautos com as suas músicas do Camino, compostas por si. Dois dias atrás, em Roncesvalles, perante uma audiência de um albergue completo, já com todos nos beliches, deliciou-nos com uma das suas composições mais famosas, que mereceu o aplauso de todos. Miro alegrava qualquer noite num albergue ou qualquer pausa no Camino, num café ou à sombra de uma árvore. Disse-me que já não fazia o Camino por espiritualidade. Desta vez, era pela comida, bebida e convívio. Ahh, o lado profano do Camino. Conhecia todos os hospitaleiros "fixos" do Camino. Tinha amigos em todos os 'pueblos'. Cedia sempre a sua cama num albergue quando este já estava cheio, indo dormir para o chão ou para o relento. Muito há por dizer sobre Miro.

José à esquerda e Miro à direita, em Finisterra, no melhor pôr-do-sol do mundo. Estavamos ainda muito longe desse dia.

Nunca vi uma concentração tão grande de cavalos como de Zubiri até Larrasoaña. Até mesmo no meio do Camino. Passava entre eles. Os potros ficavam curiosos com a minha passagem. Quando falava com eles, faziam gestos tímidos de quererem aproximar-se. Alguns enfiavam a cabeça no lombo das suas mães. Quando cheguei a Larrasoaña, vi que iria conseguir.

Muuuuuuuu...

Em Larrasoaña o Camino continuava por fora do 'pueblo', mas decidi entrar para conhecer o meu objectivo frustrado do dia anterior. Encontrei um agrupamento de peregrinos entre os quais se encontravam duas alemãs que conhecera no albergue em Zubiri. Disseram-me que chegara mesmo a tempo para o autocarro. O quê?! É certo que cada um tem o seu Camino, mas aquilo era algo que não conseguia compreender. Nos dias seguintes fui tomando conhecimento das imensas formas de "batota" da peregrinação. Muitos faziam percursos de autocarro, ou apenas parte parcial dele. Outros chamavam um táxi a meio da etapa. Existia uma rede de transporte de mochilas para satisfazer aqueles que gostavam de caminhar leves. De início fiquei desiludido, mas com o tempo passei a olhar para essas pessoas não como peregrinos, mas como algo diferente. De facto, existia o termo "turigrino" pelo Camino, um termo depreciativo para se referir a turistas no Camino e não a peregrinos que juraram fazer cada centímetro do Camino a pé, aconteça o que acontecer.

Larrasoaña

Finalmente parara de chover. O céu estava azul e o sol brilhava. Estava tudo verde. O cheiro da manhã era animador. Estavam 20º, um dia perfeito para caminhar.

Escadas como esta eram um autêntico desafio

O percurso até Burlada fez-se com imensas dificuldades nas descidas. Reencontrei Francesca que também estava com enormes dores na perna. Também estava a tomar Voltarem e mostrou-me a ligadura que tinha no joelho direito. Notava-se que estava com dores. Caminhávamos os dois lentamente. Eu e a Francesca tínhamos um enorme problema de comunicação. Ela apenas falava italiano. Eu não falava italiano. Comunicávamos num "espaliano" que frustrava em muito a minha vontade de falar mais ou exprimir pensamentos mais complexos.

Camino

O mesmo campo, depois de subir um pouco. As subidas eram fáceis.

Quando cheguei a Burlada parei num café para descansar um pouco. O dono do café disse-me que faltavam 5km até Pamplona. Ia conseguir! Francesca já não conseguia andar mais. Ficou ali.

Entrada de Burlada

O percurso seria todo por dentro da cidade. Foi fácil! Nem dei por entrar em Pamplona. Só quando vi no guia que a entrada era pela ponte de la Magdalena, atrás de mim, é que soube que já me encontrava na cidade.

Puente de la Magdalena sobre o rio Arga

Tentei encontrar o albergue pelo mapa, mas não consegui. Segui então dois peregrinos espanhóis. Ainda demorou um pouco até me aperceber que estavam a fazer o roteiro turístico pela cidade antes de irem para o albergue. Bolas! Uma lição que se aprendia rapidamente no Camino era o de nunca seguir cegamente outros peregrinos.

Seguindo os peregrinos Espanhóis lá ao fundo...

Perguntei onde ficava o albergue. Indicaram-me que existia um totalmente novo, mesmo no centro do "casco antiguo" da cidade, que ainda não surgia nos guias do Camino. Fui até lá. Situava-se no seminário episcopal, um edifício de 1782, totalmente remodelado por dentro e recuperado por fora. Que albergue! Muito acolhedor, com condições fenomenais.

Entrada do albergue em Pamplona

Estava muito feliz por ter conseguido chegar até Pamplona. No dia anterior não poderia estar mais desanimado. Mas naquele momento, sentia que iria conseguir. Não teria que parar. Apetecia-me sorrir o tempo inteiro.

Ruas de Pamplona. Antes das 16:30, obviamente!

Dia 2: Roncesvalles - Zubiri

Acordei às 6:00 com quase todos os peregrinos. A música ambiente gregoriana que colocaram ao acenderem as luzes do albergue de Roncesvalles, no enorme dormitório comum, acordou praticamente todos. Manti o hábito até ao final do Camino de acordar sempre às 6:00. Mesmo quando queria dormir mais, abria sempre os olhos às 6:00. O peregrino que estava no beliche ao meu lado, enquanto arrumava a sua mochila, disse-me a primeira frase da manhã, mesmo antes de me levantar. "It's rainning". Outro dia com chuva. Não desanimei. Nem quando desci as escadas e verifiquei que os meus joelhos mal o deixavam fazer. Nem quando cheguei à rua e verifiquei que ainda era noite cerrada.

Analisei juntamente com o Alfred o mapa da etapa do dia. Combinámos terminar em Larrasoaña. Foi a última vez que vi o Alfred, nunca me chegando a despedir dele.

Iniciei o Caminho de noite, acompanhado de Ana (Iana) do País Basco à luz da sua lanterna pelo meio de um bosque. Tomámos o 'desayuno' em Burguete. Foi quando reencontrei novamente o David. Começámos a conversar e terminou por ser o meu companheiro de Camino até Zubiri. A chuva não parava de cair. A minha terceira t-shirt já estava ensopada. Comecei a duvidar da fiabilidade da minha capa para a chuva.

Ana e um "espanhol" a caminhar em Burguete

Os joelhos sempre a doerem, com o joelho direito a destacar-se na dor, principalmente nas descidas. Passámos por trilhos de terra e rocha, que com a chuva se tornavam em ringues de patinagem artística devido ao solo argiloso. Os sulcos das botas encheram-se de argila, que em contacto com mais argila e um joelho direito muito tremido, premiaram-me com a minha única queda do Camino, de costas, amortecido pela mochila. Não foi grave. Foi mais o susto.

David, aka "tartaruga ninja"

Passando Espinal, o percurso e o resto do dia foram marcados pela dor. A subida até ao "Alto de Erro" foi... não digo agoniante porque essa é a palavra que reservo para a descida. Inicialmente a dor surgia nas descidas, depois nas subidas também, e passado um pouco, até nos percursos sem desnível. Uns quilómetros depois o bastão transformou-se numa bengala. A perna cada vez mais esticada. Nos últimos 6km até Zubiri, o joelho esquerdo começou a doer igualmente.

Alto de Erro

David acompanhava-me sempre. Por vezes desaparecia, andando mais rápido, mas esperava por mim sentado numa rocha. Perguntou se não queria ligaduras para ligar e apertar o joelho. Já estava por tudo. Uma peregrina francesa parou e ofereceu-me Voltarem em Gel para colocar debaixo da ligadura. Não ajudou muito. Mas sob a indicação de que Voltarem ajudava, tomei um Voltarem Rapid em comprimido. Também não ajudou. Parou de chover.

Descida para Zubiri

A descida acentuada dos últimos quilómetros até Zubiri demorou uma eternidade. Via cada passo como uma conquista. Em certos troços demorava cerca de 1 minuto para descer 1 metro. Se não fosse o bastão, não teria conseguido. David tinha descido rapidamente até Zubiri e ficara junto à ponte à minha espera. Bjorgen seguia-me com enormes pausas à distância, sempre atrás de mim, a vigiar-me. Dias mais tarde, em Los Arcos, sentados numa esplanada, disse-me que ao ver-me neste dia, julgou que eu nunca iria conseguir. Ficara muito contente por ver que não tinha desistido. Frases destas, no Camino, não nos fazem nem bem ao ego nem nos fazem chorar. Fazem-nos sorrir para a vida com um enorme orgulho por nós, e pelo nosso novo amigo do Camino. Mas estava longe de me sentir assim quando cheguei a Zubiri, pois mal conseguia andar. No entanto, as dores davam-me uma força ainda maior para continuar. Não iria ser vencido. O meu objectivo era ir á farmácia, ver o que poderiam fazer, e seguir até Larrasoaña. Havia ali a única farmácia desde Burguete.

Chegada a Zubiri

Quando cheguei a Zubiri disseram-me logo que o albergue já estava cheio. Às 14:30?! Segui até à farmácia na outra ponta de Zubiri. Fechada. Desde as 14:30 às 16:30. Já não me lembrava dos horários em Espanha. Eram 14:36. Demorei 6 minutos para percorrer uma rua de Zubiri. Raios. Não ia conseguir. Não. Ia! Perguntei se havia alguma farmácia em Larrasoaña. Ninguém parecia saber. Era o fim. Não ia arriscar.

Quando cheguei à ponte de Zubiri, o David ainda estava à minha espera. Mesmo antes da ponte vi um albergue privado. Entrei. Dois peregrinos entraram atrás de mim, em que lhes disseram que já só havia um lugar e eu estaria primeiro. Só tencionava perguntar o preço, mas era então ali que iria ficar. Quando saí, foi mesmo a tempo de ver David arrancar para Larrasoaña. Chamei-o, mas já não me ouviu. Foi a última vez que o vi. Estava a perder os meus companheiros de Camino com uma rapidez incrível, e sem sequer me despedir deles.

Esperei pela abertura da farmácia num café. Conheci John, um Irlandês que me iria acompanhar nos próximos dias. Tinha um sentido de humor terrível. Dizia sempre que se a dor não passasse com cerveja, era porque ainda não tinha bebido o suficiente. Irlandeses. Quando me perguntava se ainda tinha dores, dizia-me sempre "Don't worry about that! Think of this: you can always amputate!". Quando me viu acender um cigarro contou-me a história curiosa de como conseguiram proibir de fumar em todos os locais fechados na Irlanda, e do livro, traduzido em todas as línguas, que o ajudara a deixar de fumar. Tenho aqui a indicação...

Finalmente cheguei à farmácia, conhecida por todos como "Loja do Peregrino". A loja mais frequentada por peregrinos nos pueblos, logo a seguir às "tiendas". Após explicar as dores agudas "en las rodillas", a farmacêutica foi buscar uma caixa e deu-ma para as mãos. Diclofenaco.

- "Voltarem?"
- "Si."

O quê?! Tinha disso às carradas na mochila. Perguntei se havia algo mais a fazer. Disse-me que não. E que só me estava a dar aquilo em "pastillas" porque a dor era mesmo grande. O John já me tinha avisado para não tomar nenhum analgésico. Cortar com os alarmes de dor do corpo no Camino não era realmente boa ideia. Comecei então a tomar o anti-inflamatório. Por doze dias.

Fora forçado a parar. As dores não pareciam diminuir. Estava completamente arrasado, mais no espírito do que no corpo. Não tinha cumprido o objectivo de Larrasoaña. Isso deixara-me totalmente em baixo. Mas amanhã seria um novo dia.

quarta-feira, 10 de outubro de 2007

Dia 1: Saint Jean Pied de Port - Roncesvalles

Saint Jean Pied de Port, Rue de la Citadele

Começo a escrever, tal como comecei a andar. Com toda a inexperiência do mundo nas coisas do Camino, sem saber o que iria encontrar. Lembro-me do meu primeiro passo, logo após ter parado à porta do albergue em Saint Jean Pied de Port.

- "Oh no, it's raining!"
- "Yes."

Por uma fracção de segundo foquei a ideia de esperar que parasse de chover. A ideia pareceu-me ridícula. E se chovesse todos os dias? Estava ali para fazer o Caminho. Vesti a capa de chuva e dei o primeiro passo para fora do albergue. Finalmente o Caminho. Ansiava por aquele momento.

Albergue em Saint Jean Pied de Port

No dia anterior tinham-me avisado para não ir pela rota de Napoleão se estivesse mau tempo. Estava a chover a potes. O dia estava cinzento. Lembrava-me das palavras da Li "não atravesses os Pirinéus sozinho se estiver mau tempo". Teimoso, já tinha decidido que queria fazer a rota de Napoleão. Não queria ir pela de Valcarlos. Isso para mim seria interpretado na altura como um sinal de fraqueza. Logo no início do Caminho, não. Mas não queria fazê-lo sozinho. A poucos metros à minha frente Caminhava Francesca, da Itália. Estava só. Era fácil conhecer alguém. Meti conversa com ela, fomos comprar comida a uma das duas únicas lojas abertas, e caminhámos juntos.

Começamos a subir a íngreme subida à saída de Saint Jean Pied de Port. Quase no topo, a Francesca parou. O tempo estava a piorar. Olhou para trás e decidiu que queria ir pela rota de Valcarlos. Perguntou-me se a acompanhava. Pensei durante longos segundos. Não queria ir sozinho. Mas... não. Iria continuar a subir. Iria só. Despedi-me da Francesca. Passou um grupo de peregrinos e segui-os.

Francesca no albergue de Santo Domingo de la Calzada

Fui sempre alternando companhia pelo Caminho. O Caminho... eu já sabia que era a subir. Mas até esse dia, nunca tinha percebido o que é realmente SUBIR. Subir é a palavra de ordem. Quando parece que já não se sobe mais, há uma curva e... surpresa, uma nova subida. Pensei que o meu coração fosse rebentar. Tive que começar a fazer pausas. O cansaço começou a surgir. A chuva constante era desanimadora. Estava calor. Combinação terrível com a capa de chuva totalmente fechada, pois fica tão molhada por dentro devido à transpiração e humidade como por fora.

Parei no albergue de Orisson, que não surge no meu mapa. Foi a única vez que usei uma t-shirt de algodão para caminhar. Na casa de banho, dava para espremer bastante água dela. Estava totalmente molhada. Mais confortável com uma t-shirt seca e um 'café au lait', segui pelo caminho. Ingénuamente, pensava que o pior já tinha passado.

Tentava sempre seguir na frente de um grupo mais lento. Assim ficava com a segurança que alguém iria passar por mim. Conheci David, um Francês que me iria acompanhar no segundo dia. Para além da mochila, caminhava com uma tenda da Quechua, daquelas de "dois segundos". Daquelas que às costas, fazem qualquer um parecer-se com uma tartaruga ninja. Apesar do peso, David estava em boa forma e tive que me despedir dele, pois não conseguia acompanhá-lo. Mais tarde soube que David falhara a saída da estrada e chegara uma hora depois de mim a Roncesvalles.

O grande teste à força de vontade dá-se quando as subidas começam a ficar mais íngremes. Não vos consigo descrever a imagem. Os Pirinéus devem ter uma vista espectacular, mas com o nevoeiro que estava, via apenas 10 metros à frente e 10 metros atrás. Ouvia o som de riachos e vacas, mas não via nada. Por vezes ouvia vozes atrás de mim. Parava. Nada. Olhava para a frente e via um trecho de uma subida. Baixava a cabeça. As nuvens passavam velozmente entre as minhas pernas. O vento soprava cada vez mais frio. O cansaço era cada vez maior. Parava. Retomava a subida lentamente. Olhava em frente e a vista era a mesma de há 5 minutos atrás. Uma subida. Passado horas as pernas começaram a dar sinais de cãibras. Relaxei e fiz o caminho mais pausadamente. Não estava preparado fisicamente.

Uma foto interessante que tirei de Bjorgen, um Dinamarquês com quem iria falar mais tarde. A única que tirei na subida dos Pirinéus. Demonstra bem o meu raio de visão. Bjorgen ainda gozou com um "Hey! Big smiles everybody!".

Bjorgen e a vista dos Pirinéus

Devem ter passado umas 6 ou 7 horas quando cheguei ao desvio que seguia para fora da estrada. Via apenas um sinal a apontar para o nevoeiro e um pedaço de relva. Um passo para o nada. Segui nessa direcção. Vi um vulto à distância, entre o nevoeiro. Tinha chegado à "cruz". Por trás de mim chegaram 4 alemães. Destacava-se o Alfred e a sua irmã que estava com algumas dificuldades. Alfred era muito bem disposto e conversador e tinha uma forma física brutal. Ia devagar apenas devido à sua irmã.

Entrámos num carreiro de lama em que apenas dava para colocar um pé de cada vez, um à frente do outro. Por baixo, uma descida a pique que parecia sem fim, pois terminava lá em baixo em nevoeiro. Foi então que aconteceu. Dei um passo em falso. Para o corrigir, fiz mais força nas pernas. Dei gritos de dor. Não para alguém me ouvir, mas de dor aguda genuína. Duas cãibras, uma em cada perna, nas coxas, ao mesmo tempo. O bastão era tudo o que me segurava para não cair. Enterrado na lama, agarrei-me com força a ele. O Alfred veio a correr para mim. Não via quase nada devido às dores. Apenas disse "cramps... on both... legs... it hurts". Rapidamente o Alfred tirou da sua mochila um kit de primeiros socorros. Falava calmamente para me tranquilizar, a dizer-me que era normal, que corria em maratonas e sabia bem o quanto doía. Também me disse que trabalhava num hospital e que tinha o ideal para cãibras. Comprimidos de Magnésio. Deu-me 3, que os tomei de imediato. Passado uns minutos a dor passou. Não voltei a ter cãibras o resto do caminho.

Alfred e a sua irmã

Continuei a caminhar com eles. Depois do que acontecera, não queria ir sozinho. Quando desejamos que párem as subidas e só queremos descer, surgem as descidas vertiginosas que nos fazem arrepender dos nossos desejos. Mas isso só depois da lama que me fez redefinir o conceito de "lama". O meu bastão conservou a marca preta de lama, até onde ele se afundava, à procura de um sítio mais rijo para dar o passo. Nos dias seguintes, quando relatava a minha travessia dos Pirinéus, mostrava sempre a marca no bastão.

Lama nas calças

As descidas são de uma beleza pérfida. Bosques enormes, verdes, e embora com chuva e nevoeiro, hospitaleiros, com descidas íngremes enormes. De facto, uma descida de 500 metros. Dos 1500 metros para os 1000. Receie novamente pelos músculos, mas não cederam.

Bosque nos Pirinéus

Agradeci ao meu guardião do dia, Alfred, e parei um pouco para comer algo. Alfred seguiu caminho com a irmã. Estava o dia todo apenas com dois croissants. A segunda t-shirt, agora de polyester, estava também totalmente molhada. Parara finalmente de chover. Despi a segunda t-shirt e vesti o casaco por cima do corpo.

Paragem para um snack

Continuei a descida que brindava ocasionalmente com algumas subidas que lembravam com medo as últimas horas do percurso. À medida que ia descendo, o nevoeiro começava a dissipar-se. Finalmente lá ao fundo, entre as copas das árvores, encontrava-se a Colegiata de Roncesvalles. Estava quase. Tinha conseguido. Quando cheguei e olhei para o relógio, tinham passado 9 horas desde que saíra de Saint Jean Pied de Port.

Colegiata de Roncesvalles

Nesse dia, quando pensava se conseguiria fazer novamente o percurso naquelas condições, dizia instintivamente que não. Com lama até aos joelhos e uma capa de chuva a salpicar água por todo o lado, entrei orgulhoso na Colegiata, como tantos outros entraram antes de mim, e ainda irão entrar depois, exibindo o meu aspecto estafado e miserável como se fosse a melhor coisa do mundo.

Conheci no bar um peregrino numa cadeira de rodas. Estava paralisado da cintura para baixo. Começara o Camino da porta de sua casa, na Bélgica. Fazia-o numa bicicleta de mãos, juntamente com a sua mulher. Tinha um carro de apoio para a cadeira de rodas e cuidados especiais que os albergues não poderiam providenciar. A conduzir o carro estava uma mulher Belga que já fizera o Caminho três vezes, e que se disponibilizou para o acompanhar. Nos dias seguintes, quando pensava que estava demasiado cansado para andar, principalmente quando chegava ao final de uma etapa, pensava sempre nele. "Não! Eu não tenho desculpa para não andar". E andava sempre mais.

O ambiente em Roncesvalles era incrível. Todos os que começavam o Camino para além de Espanha, que eram bastantes, diziam-me sempre o mesmo, que por vezes passavam meses sem falar com ninguém, mas assim que chegavam a Espanha, a Roncesvalles, cada cara que viam falava com eles, cumprimentava-os, sorriam, continuavam conversa. Era o mundo do Camino com o comportamento dos seus habitantes.

Foram tantas as pessoas que conheci e falei ao longo de cinco semanas, que seria impossível falar de todas elas. Apenas falarei ocasionalmente de uma ou outra pela sua influência no meu Camino, ou pelo seu comportamento mais peculiar. Em Roncesvalles, pela primeira vez deu para ter uma ideia da quantidade de pessoas que faziam o Camino. Por vezes os albergues de um pueblo enchiam com mais de 200 pessoas. Por dia. Naquela linha temporal do Camino. De facto, as distâncias no Camino, quando se referiam a pessoas mediam-se por dias. "Está dois dias à frente". "Vem um dia atrás". E cada desses dias continha toda a população daquela linha temporal do Camino. Mudávamos de local todos os dias. Mas caminhar duas etapas num dia, era como se mudássemos de um mundo para o outro.

É impossível descrever tudo o que se passa num dia do Camino. Termino apenas com as palavras que ouvi na missa do peregrino em Roncesvalles, que, embora não seja Cristão ou de nenhuma religião, tive curiosidade em assistir. "et ultreya et suseya".

terça-feira, 9 de outubro de 2007

O Regresso


Dia 1: Saint Jean Pied de Port - Roncesvalles
Dia 2: Roncesvalles - Zubiri
Dia 3: Zubiri - Pamplona
Dia 4: Pamplona - Puente la Reina
Dia 5: Puente la Reina - Estella
Dia 6: Estella - Los Arcos
Dia 7: Los Arcos - Logroño
Dia 8: Logroño - Nájera
Dia 9: Nájera - Santo Domingo de la Calzada
Dia 10: Santo Domingo de la Calzada - Belorado
Dia 11: Belorado - San Juan de Ortega
Dia 12: San Juan de Ortega - Burgos
Dia 13: Burgos - Hornillos del Camino
Dia 14: Hornillos del Camino - Boadilla del Camino
Dia 15: Boadilla del Camino - Carrion de los Condes
Dia 16: Carrion de los Condes - Sahagún
Dia 17: Sahagún - El Burgo Ranero
Dia 18: El Burgo Ranero - León
Dia 19: León - Villadangos del Páramo
Dia 20: Villadangos del Páramo - Astorga
Dia 21: Astorga - Rabanal del Camino
Dia 22: Rabanal del Camino - Molinaseca
Dia 23: Molinaseca - Villafranca del Bierzo
Dia 24: Villafranca del Bierzo - La Faba
Dia 25: La Faba - Triacastela
Dia 26: Triacastela - Sarria
Dia 27: Sarria - Portomarín
Dia 28: Portomarín - Palas de Rei
Dia 29: Palas de Rei - Ribadiso
Dia 30: Ribadiso - Monte do Gozo
Dia 31: Monte do Gozo - Santiago de Compostela
Dia 32: Santiago de Compostela - Negreira
Dia 33: Negreira - Olveiroa
Dia 34: Olveiroa - Finisterra


Regressei ontem. Percorri toda a distância entre Saint Jean Pied de Port e Finisterra, passo a passo, a pé. O que de início parecia uma verdadeira conquista, no final fez-se com naturalidade. Uma naturalidade conquistada com muito esforço, dor e lágrimas.

Não faço ideia de como continuar o blog. Se continuar a escrever, terei que filtrar uma enorme parte do Camino, muito pessoal. Guardarei só para mim. Talvez comece a escrever algo e veja no que dá.

O meu diário, que com muito custo, conseguia arranjar algum tempo para actualizar, está com 221 páginas escritas, e ainda me faltam os dois últimos dias. Tirei 1280 fotos. Certamente colocarei aqui algo. Ainda não sei é o quê...

Até lá: