sábado, 8 de março de 2008

Dia 33: Negreira - Olveiroa

Agora estou a lamentar o passado. Estou na última página do meu diário. Restam onze linhas de texto que foram escritas no terminal de autocarros de Vigo, já de regresso a Portugal. Não o cheguei a actualizar. Faltam-me dois dias no Caminho. Vou tentar recuperar o passado por aquilo que ainda me lembro. Não sei o que vai sair daqui...

Amanhecer

Acordei um pouco depois das 6:00. O Denis já estava de pé, mas a maioria ainda dormia. Sabíamos que a etapa desse dia iria ser dura. Tínhamos que subir uma montanha em 10 quilómetros. Fomos os segundos a sair do albergue, logo a seguir a um casal de Franceses. Ainda era noite cerrada e estava bastante nevoeiro. O Denis tinha uma lanterna bastante poderosa, daquelas de colocar na testa. Sem ela, seria bastante complicado encontrar o caminho.

O magnífico Caminho de Finisterra

O dia amanheceu com uma névoa fabulosa. O caminho de Finisterra sempre me fascinou mais pela sua mística pagã, e naquela manhã, estava como que a caminhar por uma terra longínqua de Celtas, totalmente desligada que qualquer contexto religioso que a ligasse ao Caminho Francês. Estava finalmente a perseguir o sol até ao oceano, no meio da natureza.

Como adoro névoa

Era muito difícil encontrar um peregrino no Caminho. Apesar de os albergues encherem, a maioria andava a fazer batota. Muitos caminhavam apenas 10 quilómetros e chamavam depois um táxi. Outros iam mesmo de autocarro o percurso todo. O percurso até Finisterra é duro pela sua distância nas etapas mais conhecidas. A desse dia iria ser 37km. O mesmo no dia seguinte. E o terreno não era plano. Os que faziam o caminho totalmente a pé, contavam-se pelos dedos de duas mãos. Era portanto um caminho muito silencioso. Eu e o Denis rapidamente encontrámos um ritmo comum para o Camino. Era um excelente companheiro de Camino.

A caminho de Vilaserio

Subimos a montanha até Vilaserio. Não foi uma subida acentuada. Fez-me muito bem no meio campos, arvores, trilhos na terra, névoa e muros de pedra. Em Vilaserio parámos para um bocadilho e para descansar as pernas. Um cão monstruoso dormia ao lado da entrada da porta do café. Parecia que toda a gente na Galiza tinha um cão, sendo o tamanho mínimo aceitável igual ao de um pastor alemão. Quanto maior melhor. Foi assim desde a entrada na Galiza em O Cebreiro.

Caminho silencioso. Apenas eu e o Denis.

Havia algo no meu mapa que me estava a preocupar. Um pico de nome Monte Aro que me parecia um pequeno desafio. No entanto, no sopé do monte, começámos a encontrar avisos de um desvio no Camino. O Camino estava temporariamente cortado em direcção ao Monte Aro. Contornámos o monte, andando um pouco mais, mas evitando assim a subida e descida a pique.

Camino

Perto do Monte Aro, não posso deixar de me lembrar do odor fenomenal a bosta de vaca. Ui! Que intenso. Se é possível alguém desmaiar com o cheiro activo de bosta de vaca, muito possivelmente seria cheirar directamente a fonte daquele odor. O Carlos tinha-me avisado na noite anterior, de uma forma nada subtil "Cuidado com o cheiro da merda!". O Carlos já tinha feito aquele caminho há uns anos atrás com os seus amigos.

Caminho. Sempre verde e castanho

Do outro lado do monte, avistámos o lago de Fervenza. A vista é magnífica. Pareceu-me muito agradável, com as suas povoações rodeando a extensão de água, mas o caminho passava ao lado do lago. Estávamos numa posição alta, e assim que descemos um pouco mais, deixámos de ver o lago.

Lago Fervenza à distância

O dia já ia avançado, e tanto eu como o Denis ansiávamos por algum café onde pudéssemos parar. Estava quase sem água nenhuma, e tinha já alguma fome. Mas parecia que em todos os pueblos por onde passávamos, nenhum deles tinha um café ou mini-mercado. Nada.

Finalmente a exaustão venceu. Sentei-me à beira do caminho, no chão. Não podia avançar nem mais um passo. Tinha algumas coisas na minha mochila que podia comer. Um pêssego e uma barra de cereais. O Denis ainda tinha uma maçã. Dividi um Kit-Kat com o Denis. Não podíamos estar muito longe de Olveiroa.

A caminho de Olveiroa

Continuámos caminho, e de facto, logo ao virar da esquina, encontrámos a entrada para Olveiroa. Chegámos ao albergue. Era lindo! O albergue não era um só edifício. Penso que seriam uns cinco edifícios de pedra, totalmente reconstruídos. Duas casas com camas, a casa da recepção com uma sala de convívio e uma casa para a cozinha e sala de refeições. A casa principal com camas já estava lotada! Era o problema dos "turigrinos". Mas esse facto não me chateava minimamente. Cada um fazia o seu próprio caminho. A hospitaleira conduziu-me juntamente com o Denis, gozando que ninguém iria dormir na rua, pois ainda restava um edifício para abrir... o estábulo! Pensei que ela estivesse a brincar, mas na verdade, abriu-nos uma porta que dava para um estábulo. Umas escadas conduziam a um piso em madeira na parte superior com seis camas, muito acolhedor. Sossegou-nos dizendo que naquele dia não chegaria nenhum peregrino a cavalo.

Albergue de Olveiroa

O Carlos, na noite anterior, disse-me que iríamos ter uma surpresa em Negreira, mas não queria contar para não a estragar. Desiludido, contou-me que a surpresa era que a hospitaleira tinha a tradição de fazer uma enorme sopa para todos os peregrinos na sala de refeições, mas que tinha deixado de o fazer devido a pressões do novo restaurante que tinha aberto ao lado do albergue. A hospitaleira ainda deu a deixa de que ela não poderia fazer, mas se alguém quisesse...

Ao fundo, um dos pequenos recantos do albergue, um pátio com mesas e bancos.

Mais tarde, com o meu quarto já cheio, uma sétima peregrina mudou-se para lá, de uma cama na casa principal para o chão. Disse-me que ali era mais sossegado, pois já tinha detectado um ou dois roncadores no enorme quarto comum da casa principal.

Vista da janela do quarto para o albergue

Fui jantar com o Denis a um restaurante. Como sempre, pedimos vinho, e aceitámos a sugestão do vinho da casa. O vinho veio e provei-o. Olhei para o Denis que também o provou. "Naaa... something's not right". Chamámos a empregada. "O vinho está estrado!". Ela avisou-nos que o vinho ali era um bocado para o... verde, e se não queríamos um outro diferente. Dissemos que não, que podia vir do mesmo. Veio outra garrafa. Provámos, e... arggg ele não estava estragado! O PIOR vinho que já bebi em toda a minha vida. Mais tarde juntou-se a Jasmine, o Alemão, a Coreana, o Carlos, o Bruno, um espanhol e duas alemãs. Todos ofereciam o seu vinho a todos. Ninguém queria o vinho... isto é, nos primeiros copos, porque depois começou a saber melhor hehe.

De volta para o albergue juntamente com as duas alemãs encontrámos o Miro. As duas alemãs tinham começado o Caminho em Muxia e dirigiam-se na direcção de Santiago de Compostela. Falaram as maravilhas do Caminho de Muxia para Finisterra. Lamentei não ter tempo para o fazer. O Miro proporcionou a todos um final de noite com música e risos.

Um grupo já muito divertido. As alemãs, Miro e o Denis. Tenho que pedir ao Miro a foto dele a beijar a careca do Denis!

No dia seguinte seria o meu último dia no Caminho. Iria chegar ao oceano, a Finisterra.

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